100 dias de isolamento: o que acontece lá fora e o que acontece aqui dentro

Pablo Picasso, 1956

Pablo Picasso, 1956

Ainda que ser ter atingido um ponto ideal e já com uma retomada gradual do trabalho e comércio em muitos locais, ultrapassamos a marca de 100 dias de isolamento social. Nos últimos dias ultrapassamos a triste marca de 60.000 mortes pela COVID-19, e a pandemia parece longe de estar controlada por aqui, registrando mais de mil óbitos diariamente. 

Era o final de março quando o isolamento passou a ser adotado por aqui. Lembro que a decisão de adotar o regime home office no trabalho veio até de maneira pouco planejada. Seriam apenas 15 dias no começo, para avaliarmos a necessidade de continuar o trabalho à distância. Apesar de ouvir notícias de outros países e suas quarentenas, não achei que por aqui a coisa aconteceria da mesma maneira. Ingenuidade completa. 

Naquela ocasião os casos ainda não passavam de 300 no país todo e os óbitos não chegavam a 10. O presidente já apostava na tese de histeria política e de que era apenas uma gripezinha. Notícias falsas já circulavam aos montes, muitas delas colocando a China como responsável pela disseminação planejada do vírus, como forma de prejudicar os mercados e empresas estrangeiras. Movimentos sociais já se mobilizavam para formar a proposta do que viria a ser o auxílio emergencial, e que depois o presidente quis avocar a paternidade. 

Poucos dias depois foi decretada a quarentena no Estado de São Paulo, de início até o começo de abril. Serviços não essências deveriam ser fechados. Depois disso, assistimos as primeiras imagens da cidade vazia e a coisa começava a tomar uma dimensão bastante real. O medo e a apreensão aumentaram, um problema de fora agora estava chegando perto. Os 15 dias em home office certamente seriam maiores. 

No começo pareciam férias. A gente tinha mais tempo livre e vontade de aproveitar a casa. Deu vontade de tirar todos os planos do papel. Ler todos os livros que foram comprados e colocados direto na estante, alguns sem nem sair do plástico. Logo veio uma lista de filmes na cabeça e uma vontade de fazer uma maratona. Porque agora ia ter mais tempo ocioso, e dava até pra trabalhar de pijama. Não que não tivesse medo também, estávamos chegando a 1000 mortos e dentre eles não estavam mais só gente idosa e com um histórico ruim. Tinha esperança também; as pessoas aplaudiram os profissionais da saúde da janela de casa. 

Em abril o rosto do então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta começou a ficar conhecido do grande público. Ele, além de médico, era um político experiente e começou a chamar atenção da população; suas posições eram ponderadas e parecia saber o que estava sendo feito, para deleite dos apoiadores do presidente e alívio dos demais. Mas logo essa atenção começou a ficar indesejada. Além disso, o presidente que falava em gripezinha também dizia estar preocupado com economia, e que não dava pra tudo ficar parado. Também surgiu a história da cloroquina, que passou a ser defendida como uma cura milagrosa, enquanto os mais precavidos preferiam olhar com calma. Muita gente correu na farmácia pra comprar o negócio sem nem saber dos riscos. 

Daí o presidente e o ministro começaram a se desentender, até que uma entrevista na Rede Globo, domingo a noite em horário nobre, foi a gota d´agua. Mandetta saiu. Parte daqueles que diziam que ele fazia um bom trabalho, agora começaram a criticar a sua conduta e preferiram seguir a linha do presidente. O novo ministro também era médico e empresário do ramo da saúde. Mas não ia durar muito. 

Nesse momento a quarentena começou a perder a graça também. A bagunça não era só lá fora, mas aqui dentro também. Começou a dar mais saudades de ver as pessoas. Agora já era hora de arrumar solução pra muita coisa, dar um jeito de fazer tudo dentro de casa. Mas os livros continuavam na estante. Alguns até saíram. Uns filmes também foram assistidos. O tempo já nem parecia mais ser tão grande assim. E o desanimo ia aparecendo. É engraçado porque é um sentimento meio sem forma, sem cara, sem explicação. As vezes ele só aparece ali e você o deixa entrar – ou sair, sei lá – e não dá vontade de lutar contra ele. Tem quem diga que conseguiu ficar muito mais produtivo, que diz que nunca trabalhou tanto. 

Mesmo tentando ignorar as notícias, já que não dá pra fazer nada com relação a isso mesmo, dá um pouco de medo. É como se tivesse um monstro lá fora, ou como se a realidade já fosse ser outra quando a gente saísse de casa. Alguém chegou até a anunciar o fim da economia neoliberal, que tudo teria que ser reinventado pra enfrentar esse novo mundo. Não dá pra ignorar isso 100%. E tem dias que parecia que era possível conquistar o mundo de dentro do quarto, em outros a gente só queria ser mais um móvel. Nessa altura, já tinham mais de 3.000 mortos. 

Alguns hábitos foram criados pra sobreviver a isso. Eu comecei a ler na sacada do apartamento nos finais de semana, tentando tomar um pouco de sol, coisa com que nunca me preocupei antes. Assistir aos amigos em chamadas de vídeo também. Eu nunca havia atendido uma chamada dessa maneira antes e nem tinha vontade. Sempre fui do contato humano e gosto pouco do bate papo virtual. Chegou num ponto que nem parece que houve um 2.020 antes da quarentena. Que a gente viajou, se abraçou, se aglomerou. Tanta coisa aconteceu antes disso, e tantos planos que foram por água abaixo.

Não esqueçamos que quarentena é privilégio, que tem gente que não teve essa possibilidade. Que passou esse tempo todo com medo do lado de fora, sem poder trabalhar de casa. Ou porque era obrigado, ou porque não tinha outro jeito. Teve quem se deu conta disso pela primeira vez, de que a vida no Brasil é completamente desigual, de verdade. Teve quem pouco se importou e achou que era uma boa ideia sair de carro protestando, pro seu comércio voltar a abrir. É por isso que logo aquela esperança de que tudo ia mudar foi logo por água a baixo. Tem gente que vai continuar sendo igual. 

E abril Moro saiu do governo. Tudo começou com uma disputa pela chefia da Polícia Federal, que ele não aceitava a troca e o presidente quis impor. Saiu atirando. Deu uma coletiva de imprensa, numa sexta-feira que todo mundo parou pra ver. Acusava de intervenção política na polícia federal, especialmente no Rio de Janeiro. Disse que tinha provas. Muita gente ficou do lado dele, e o presidente perdeu muita popularidade. Teve quem acreditou que o governo não ia aguentar e logo iria cair também. “E daí?”, foi o que o presidente disse sobre as mortes naquela altura. 

E nisso o Brasil mal piscou e mais de 10.000 pessoas já tinham morrido. Não dava mais pra saber quem era quem, se era todo mundo velho e doente ou não. Começou a aparecer gente conhecida que estava pegando o negócio. Logo o novo ministro da saúde também saiu. Não quis endossar a postura do presidente com relação a cloroquina. Não tinha mais Moro nem ministro da saúde. A vida lá fora estava bem doida. Teve gente com coragem pra xingar enfermeira, que reivindicava atenção para as mortes, da sua categoria e de todos. 

 Mas pelo menos o ritmo em casa tinha se estabilizado, de certa forma. Máscara pra ir na portaria, álcool gel, essa coisa toda. Uns dizendo que tudo bem só dar uma saidinha pra fazer caminhada porque não cruza com ninguém, ou que fica arrumando desculpa pra sair. Eu sempre preferia ficar na minha, quieto. Tenho medo desse negócio também e não ia arriscar por uma besteira. Eu sei que as vezes enche o saco, mas pelo menos uma certa rotina voltou ao normal. Alguns dos novos hábitos foram incorporados de fato, mas outros já ficaram no caminho. As vezes tudo parecia que ia desmoronar as vezes era só preguiça mesmo. Noutras, dava orgulho do dia. 

E os dias foram passando. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo, segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo, segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo, segunterçaquartaquinta...

O vídeo da reunião dos ministros que o Moro disse que provava tudo finalmente veio a público no final de maio. Muita gente se assustou com o palavreado usado e com a forma com que nosso país tem sido gerenciado. Mas logo deu pra perceber que esquisito era esperar que fosse diferente. Que aquela gente soubesse da importância de seus cargos. Eles são aquilo mesmo. Mas teve que achou bonito e aplaudiu o presidente. Aliás, teve quem o aplaudiu ele esse tempo todo, e saia de casa pra manifestar em favor do governo. Ele aproveitava e ia também, sem máscara nem nada.

Mas agora a coisa já estava doida demais e ele já nem tinha todos os mesmos apoiadores de antes. Nos Estados Unidos a polícia matou o George e isso reverberou no mundo todo. Por aqui, as torcidas organizadas começaram a organizar manifestações. Pra ir pra rua, de máscara mesmo. Os movimentos negros também foram. A rua não era mais só dos bolsonaristas. Mas o dito cujo continuava circulando por aí sem máscara, cumprimentando seus apoiadores. As investigações do STF também avançavam, com busca e apreensão de apoiadores do presidente e logo com prisão de apoiador extremista. Mas a democracia segue ameaçada. 

Vieram os 30.000 mortos. 40.000. 50.000. E agora a gente ultrapassou 60 mil, e todo mundo já cansou da quarentena. Muitos irritados porque não saíram de casa esse tempo todo, enquanto outros tantos não levavam nada a sério. E os governos estaduais começaram a anunciar a flexibilização. Shopping reabrindo, futebol voltando. Show de dentro do carro. E no meio disso tudo, não dá pra dizer que a gente venceu. Que a curva de contágio foi normalizada. Não teve direção, nem um planejamento eficiente. Nem ministro da saúde tem mais. E mais uma vez quem mais perdeu é quem perde sempre. Tem duas pandemias agora, a do rico e a do trabalhador. E a deste último não é só de COVID-19; é de desemprego, salário achatado, trabalho precário e redução da capacidade industrial do país e consequentemente da oferta de emprego. 

O filósofo Byung Chul-han, em seu livro Topologia da violência, chama atenção para o fato de que o a histeria de acumulação capitalista e o medo da morte se condicionam mutuamente. E quem tem mais capital, pode ter mais tempo de vida, ao comprar o tempo de outras pessoas para viver mais. O capital vai contra a morte. Se a vida é delimitada cronologicamente, o tempo do capital é diverso. A pandemia escancarou isso, e muita gente tá comprando tempo alheio, a baixo custo, e assim pode ficar seguro longe da doença. 

E no meio desse caos todo desses últimos 100 dias, tem quem ignore isso. Como quem ignora que foram 60.000 mortes evitáveis. A economia neoliberal não morreu. Mas agora que o vírus tá circulando com mais intensidade, o capital quer que a gente despreze esse fato. Sem olhar para todas essas mortes de frente, sem meditar sobre a finitude da vida, que permite buscar o nosso propósito. A gente é obrigado a tentar sobreviver nessa loucura toda – e que loucura! – e acaba virando meio morto-vivo, pra existir a qualquer custo, e esquece que pode morrer, ou que vamos morrer. Citando Byung de novo, agora textualmente: “É necessário, portanto, assegurar mais espaço para a morte na vida, a fim de que esta não enrijeça em vida de morto-vivo.”

Que esses 100 dias não sejam em vão, e a gente deixe de levar uma vida de morto-vivo, seja aqui dentro ou lá fora. Tampouco que essas mais de 60.000 mil mortes sejam ignoradas, e que nos ensinem a viver.

Arthur Spada

Instagram @arthurspada