40 minutos de tortura

Foto Edu Leporo

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Havia dormido metade da noite embaixo da marquise de um bar com um olho aberto e o outro fechado, enrolado a um pedaço de papelão que encontrara jogado no chão da outra esquina. Magro como um cachorro sem dono, às vezes despertava ouvindo o barulho do próprio estômago, ou sentia o cheiro da fumaça que emanava da barraca ao lado.

Ele sabia que algum viciado estava fumando um “bagulho” ali e devia estar doidão. Não aguentando a fome, pensou na possibilidade de o cara o deixar dar uma tragada também. Aproximou-se lentamente e foi dizendo, ainda sem se apresentar, embora na rua todos se conhecessem, com voz mansa, como quem quisesse amizade:

- E aê meu chapa, posso entrar aí?

O céu estava repleto de estrelas e, de vez em quando, um carro de polícia passava com os faróis apagados para dar o bote na próxima vitima. Ele sabia que não podia vacilar, pois “os vermes” poderiam pegá-lo e matá-lo na calada da noite, apenas por causa da sua cor.

Esperou ainda um momento, porém não ouviu sequer uma palavra sair de dentro da cabana, feita com um cobertor velho e uns pedaços de madeira, servindo de saibro improvisado. Um cão passou rosnando para ele e o fez expulsar o cão com um “sai pra lá pulguento!” de modo que a pessoa, dentro da pequena cabana, disse meio enfurecida:

- Porra! Tem que cortar a minha brisa? Vaza daqui!

A voz era de um homem de uns trinta anos, com os olhos vermelhos e arregalados, que saiu procurando qualquer coisa no chão, mas, parecendo ao primeiro um zumbi, vindo sabe-se lá de onde, não passava de apenas mais um pobre-coitado jogado nas ruas, esquecido por Deus e pelo diabo.

O outro, por sua vez, decidiu sair andando: não queria correr o risco de arranjar briga, já que era fraco e mal cuidado, preferiu não medir forças, como ouviu alguém dizer ao seu respeito uma vez vendendo água no farol.

Aquela porra - pensava ele - dava até pra fazer algum dinheiro, claro apenas quando se estava no verão, de outro modo, quem iria abrir a janela do carro pra um preto?

Uma vez um cara, desses de traços finos, sem rastro de sofrimento pelo semblante, dirigindo um auto do ano, - ele nem devia imaginar o valor da máquina – cuspiu em sua cara chamando-o de macaco.

“Seu lugar é no circo, pretinho!” Sentiu-se humilhado como nunca antes havia se sentido.

Daquele dia em diante prometeu para si mesmo, que nunca mais venderia água no farol para filho da puta nenhum. Ainda mais filhinho de papai mimado, dizia ele.

Às vezes não dava para segurar a vontade de fumar um bagulho, esquecer quem ele próprio era, já que todos o olhavam como um animal, o que ele seria na verdade: mais um corpo indigente, encontrado no esgoto, sem nome, sem família, sem precedentes, ou número de identificação plastificado? Sabia do perigo das ruas e da maldade do mundo.Ele próprio aprendera a caminhar por aí gingando, negociando miudezas, cigarros, camisetas do camelô, celular roubado e tantas coisas mais.

Certa feita, isso fazia um mês atrás, estava no beco, esperava por um “negócio” e viu um homem, um noia, como disse o cara apontando o oitão para o sujeito, levar três tiros pelas costas. Aquela cena ficara marcada em sua mente como um pesadelo, do qual ele ainda não despertara e só tentava fugir o mais rápido possível.

De repente, era estar pelos bares, vendo as pessoas dançar e beber cerveja nas sextas-feiras, ou nos finais de semana, pensando em como roubar o imbecil que estava pagando cerveja para as putinhas que faziam ponto naquelas redondezas.

Na verdade nem queriam ir para o hotel com o desgraçado. Daí ele dava sorte, dividia o dinheiro com a menina e ainda conseguia meter o pinto nela em algum beco pouco iluminado.

Pela manhã o estômago continuava reclamando a solidão de não ter uma família, vagando a esmo, sem amigos, apenas alguns aliados loucos, ou mortos-vivos por causa do vício.

Lembrou-se que, uma semana antes, havia se espalhado que um conhecido seu roubara um chocolate em um mercado ali perto e havia sido pego pelos seguranças. Levaram-no para dentro de uma salinha dentro do próprio estabelecimento e o torturaram quarenta minutos seguidos.

Conto inédito de Wesley Barbosa

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WESLEY BARBOSA NASCEU EM 1990 E É MORADOR DE ITAPECERICA DA SERRA NA DIVISA COM SÃO PAULO. COMEÇOU A ESCREVER AOS NOVE ANOS DE IDADE, ACUMULANDO CONTOS E POESIAS. PUBLICOU SEU LIVRO DE ESTREIA “O DIABO NA MESA DOS FUNDOS” DA EDITORA SELO POVO, FUNDADA PELO ESCRITOR FERRÉZ EM 2009. O AUTOR JÁ ESTÁ TRABALHANDO EM UM NOVO LIVRO, DO QUAL DISPONIBILIZA COM EXCLUSIVIDADE PARA O BLOG O TEXTO A CIMA.