O branco incômodo
“Um elefante incomoda muito gente. Dois elefantes incomodam, incomodam muito mais”. Esta musiquinha da infância apareceu na minha memória trazida por três situações em que me senti o próprio elefante.
Na primeira, um grupo de atores, entre amigos e alguns desconhecidos, discutia sobre as dificuldades do momento político atual. Como a vida ficou mais difícil para quem vive de arte neste país.
Na segunda, um grande amigo de infância questionava o fato de termos que ter cuidado para não repetir algumas músicas de carnaval que sempre cantamos alegremente, como, por exemplo, “o teu cabelo não nega, mulata...”.
E a terceira, um outro grande amigo mostrou-me um texto que escreveu para juntar sua voz poética à luta contra o racismo e a homofobia.
Nos três casos, usei informações que adquiri estudando sobre as relações raciais no Brasil, lendo escritores e escritoras negras e, especialmente, convivendo e escutando minhas amigas e amigos pretos.
Três situações distintas, mas que trouxeram um mesmo ponto em comum. A dificuldade das pessoas brancas em entenderem que não são as protagonistas do Brasil.
No grupo de amigos, lembrei-os de que muitas situações que agora se aproximam de nós, artistas de classe média, como censura e perseguições, já são vividas desde 1500 pelos indígenas e, algumas décadas depois, pela população negra sequestrada e trazida para cá à força. Os descendentes desses brasileiros até hoje são calados, impedidos de circular pela cidade com segurança e vivem ameaçados de morrer, seja por estarem vivendo em terras desejadas pelo capital, seja por carregarem tons mais escuros na sua pele.
No segundo, perguntei a meu amigo como ele se sentiria se fossem características dele que estivessem sendo desqualificadas e cantadas a plenos pulmões pelas pessoas se divertindo.
E, no terceiro, lembrei que as pessoas negras são e sempre foram potentes, e sua representação artística como vítimas apenas endossa o estereótipo de que necessitam de algum branco para ajudá-las a vencer as situações difíceis.
Nos três casos fui encarado como um branco incômodo. Que incomoda, incomoda, incomoda por não fazer coro ao olhar acomodado das pessoas brancas que, neste país, via de regra convivem apenas com outras pessoas brancas. E, assim quando falam do Brasil, referem-se a um país em que pessoas brancas usam seu poder aquisitivo para transitar pelas cidades, comprar mercadorias, utilizar serviços e, geralmente são atendidas e servidas por pessoas pretas.
Nesse país de brancos protagonistas, não é sequer assunto morar em comunidades e acordar ao som de tiros, quando não com a polícia invadindo sua casa. Não se fala no constrangimento cotidiano do racismo (nem sempre) velado que não só faz piada com características das pessoas negras, mas faz com que sejam preteridas em entrevistas de emprego e preferidas em revistas policiais.
E o fato de não conviverem com pessoas pretas que, após um processo importante de reconhecimento da própria identidade, têm seu próprio discurso, sua literatura, filosofia, cultura e olhar histórico, não os permite perceber que muita coisa mudou neste país. Famílias pretas têm suas primeiras gerações de pessoas formadas na faculdade. E também pós graduadas. Não precisam, por exemplo, dos escritores brancos para contar suas histórias. Por mais bem intencionados que sejam. Mesmo por que as histórias contadas por escritores brancos raramente traziam subjetividade para os personagens pretos.
Os brancos não entendem que os pretos também são protagonistas deste país e, ao serem lembrados disso, reagem da mesma maneira: sentem-se eles os atingidos.
Nos três casos, enfrentei respostas semelhantes. Todos os que se sentiram “atingidos” pelas informações reclamaram: “ah, mas eu também enfrento problemas ao circular pela cidade”... “ah, mas agora ficou muito chato ter que se policiar com tudo”... “ah, mas então agora não posso mais escrever sobre isso”.
A maior dificuldade de um branco aliado à causa antirracista é fazer os irmãos brancos entenderem que, ao falarmos de questões ligadas às pessoas pretas, não somos mais os protagonistas de suas histórias, como pensamos ser durante séculos.
Não nos cabe mais falar por eles ou decidir o que é melhor para suas vidas. E, se realmente queremos um país mais justo e menos desigual, o que temos de fazer é calar, escutar e sair da frente para que ocupem seus lugares.
Renato Farias
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P.S.: Ironicamente, eu, branco, estou escrevendo esta coluna no dia em que uma pessoa preta deveria escrevê-la. Mas meu convidado, um jovem negro de 19 anos, perdeu a moradia durante esta semana e teve que buscar um outro lugar para morar. Seu texto virá na coluna da próxima quinzena.