80 Tiros
“O meu filho tava no carro viu tudo, ele quer a foto do pai, eu falei que o pai tá no hospital. Meu deus. Gente. Gente. Porque o quartel fez isso. Eu falei: Mor calma, é o quartel. Ele: Mo corre. Só tinha levado um tiro. Aí os vizinhos começaram a socorrer. Eu ia voltar, mas eles continuaram atirando e vieram com a arma a punho. Eu comecei a botar a mão na cabeça: moço, socorre meu esposo. Eles não fizeram nada, eles ficaram de deboche. Ai meu deus. Eu perdi meu amigo. Meu deus, meu deus. Eu perdi meu melhor amigo, gente. Eu tô com ele há 27 anos.”
“Dava para socorrer. Eles não deixaram. Eu tinha que morrer com ele. Meu deus, meu deus, ele é meu melhor amigo. Gente, tá doendo. Meu filho tá traumatizado, tá com calmante.”
“Não tinha nada. Só tinha a gente. Ali é calmo (...) e eu vi o quartel eu tava protegida, da mesma forma quando eu vejo um policial eu me sinto protegida (...) Do nada os caras começaram a atirar. Eu falei: Mor, calma, é o quartel (...) Ele começou a mexer com o volante. Tava meio sufocado e falou: Corre com o Davi”.
Com essas palavras, Luciana Nogueira descreveu a ação militar que matou seu marido, Evaldo dos Santos Rosa, no último domingo após o disparo de mais de 80 tiros no carro da família, em Guadalupe no Rio de Janeiro. O tiroteio foi filmado por um morador da região, o que foi fundamental para confrontar a versão inicial do exército, no sentido de que teria havido uma troca de tiros com criminosos. Evaldo era músico, trabalhou como vigilante, era pai e marido.
O exército, para justificar sua ação, chamou Evaldo de criminoso. Talvez a versão tivesse colado. Evaldo também era negro. Mas oitenta tiros são injustificáveis e alguém filmou tudo. Foram oitenta tiros a luz do dia. No Rio de Janeiro. Oitenta Tiros de fuzil, num carro com uma criança de sete anos. No carro de uma família. De uma mãe, de um padrasto. Oitenta tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros. Oitenta Tiros.
Evaldo Morreu. Uma criança vai crescer sem pai. Uma mulher perdeu seu marido e seu melhor amigo. Evaldo foi enterrado numa gaveta, no cemitério Ricardo de Albuquerque, zona norte do Rio de Janeiro.
Wilson Witzel, Governador do Rio de Janeiro, disse:
“Não me cabe fazer juízo de valor e nem muito menos tecer qualquer crítica a respeito dos fatos”.
O Presidente da República, que é comandante Supremo das Forças Armadas, não falou nada.
Em novembro de 2018, Witzel havia dito que “A polícia tem que ser truculenta com criminoso. Se bandido tiver com arma na mão tem que morrer.” Em janeiro, afirmou: “'Se entrar um traficante de fuzil dentro do Shopping Leblon, vai atirar nele. Agora, na favela pode andar de fuzil?” Evaldo foi morto por tiros de fuzil, na periferia do Rio, pelo Exército. A intervenção militar no rio já havia acabado. Também em janeiro, Witzel ganhou um quadro de seu rosto, feito com balas de fuzil.
O assassinato de Evaldo traz diversos questionamento à tona, em especial acerca do racismo institucionalizado – vez que as vítimas das ações policiais são majoritariamente negras – bem como sobre o papel do Estado. Quando ao primeiro, peço a fala de meus colegas de Blog, em especial a Tati Tiburcio, que certamente pode contribuir bem mais que eu sobre o tema. Sobre o segundo, eu me arrisco a fazer algumas considerações, a despeito de saber que nenhuma delas está à altura da importância da vida de Evaldo, mas ao menos lancemos luz a questões que entendo serem malversadas rotineiramente.
A segurança pública sempre é um tema relevante no período eleitoral, e no último pleito ganhou especial destaque em função da existência de candidatos que defendem a liberação do porte de armas para a população, bem como maior autonomia para a atuação das forças de segurança.
Há uma crença generalizada de que os agentes de segurança pública são tratados como vilões aos olhos da Justiça, os quais teriam menos garantias que bandidos, estes que contariam ainda com o apoio do “pessoal dos direitos humanos”.
Fundado nessa crença, por diversas vezes o então candidato a presidente defendeu ao longo da campanha “um excludente de ilicitude para os policiais poderem agir com segurança”. Disso resultou, no projeto de lei “Anticrime” do Ministro Sérgio Moro, alterações no dispositivo que trata da legitima defesa do Código Penal, para acrescentar e definir situações nas quais esta seria aplicável aos agentes de segurança pública.
Entretanto, tal inovação legal seria absolutamente inócua. O Código Penal já contempla a figura do excludente de ilicitude para aquele que estiver em estrito cumprimento do dever legal, cujo resultado é o mesmo da legítima defesa. Ou seja, não há crime. O que se pune, em qualquer dessas situações, é o excesso.
O estrito cumprimento do dever legal não diz respeito apenas a atuação policial, mas a todas as obrigações de ordem legal. É uma forma de assegurar a intervenção do funcionário público na esfera privada do indivíduo, para assegurar o cumprimento da lei. Isso porque, essa intervenção significa a agressão a determinados bens jurídicos (liberdade, vida, propriedade) mas é tolerada em função de um bem coletivo maior.
Por ser uma agressão, tem limites estreitos, que são os indispensáveis para a garantia desse objetivo maior. Caso sejam ultrapassados – em especial de maneira intencional - há excesso, que por isso deve ser punido.
O que se tem, portanto, é que a fala do agora presidente com a pretensa inovação legislativa a esse respeito, não enfrentam os verdadeiros problemas da segurança pública e sequer podem contribuir para diminuição da criminalidade. Antes de mais nada, devemos olhar para a organização de nossas entidades de segurança.
Uma sociedade democrática, na qual o detentor do poder é o povo, pressupõe o controle e fiscalização de suas instituições, sobretudo das forças de segurança, uma vez que, como visto, o exercício de sua atividade demanda certa agressão a bens jurídicos protegidos constitucionalmente.
O Brasil, por sua vez, possui um grave defeito nesse aspecto, já que o processo de transição da ditadura militar para a democracia foi incompleto, de modo que permaneceram diversos resquícios autoritários em inúmeras esferas da sociedade, mas em especial nos órgãos de segurança pública, avessos ao controle e a observância dos direitos fundamentais.
O padrão militarizado e violento das nossas policias é o mesmo do regime autoritário, o qual se agrava em função da insegurança e criminalidade contemporâneos. Tal situação, dificulta que a população possa compreender a diferença entre a atuação policial legítima e seu desassombro violento, o isso é claramente percebido nos comentários lançados aos montes, ao comemorar as ações policiais, sobretudo quando resultam em morte – de quem quer que seja.
A transição incompleta para o regime democrático se qualifica, a despeito de outros aspectos, na manutenção da influência política dos militares em questões políticas do país. Em razão de terem conservado esse poder, o Brasil não adotou os mesmos procedimentos de seus vizinhos para neutralizar os efeitos negativos da ditadura, em especial acerca da violência estatal, assim como pelos poucos esforços na investigação de mortes e abusos praticados durante o regime militar, tendo sido priorizadas as políticas de esquecimento.
Certamente o trabalho das comissões da verdade, ainda que de extrema relevância, foram insuficientes para trazer à tona todas as mazelas do regime e contribuir para o entendimento, no meio social, da importância da democracia e dos perigos do autoritarismo.
Após o fim do regime, a Constituição de 1.988, mesmo com sua índole democrática, pouco inovou na estrutura organizacional e no funcionamento das forças de segurança, tendo sido mantidas praticamente todas as estruturas policiais, na forma até então existentes, baseadas no modelo militarizado e truculento.
As poucas mudanças institucionais, somadas a preferência por políticas de esquecimento, contribuíram para a manutenção das características autoritárias, de modo a serem mantidos padrões de abuso de poder, violência desmedida e desrespeito a direitos constitucionais, no exercício das atividades de segurança.
Assim, consolidou-se no imaginário popular a ideia de que o modelo militar de segurança é indispensável para a garantia da ordem pública. Modelo este, que é voltado para a guerra e o abate do inimigo, mas não para a pacificação social. E o inimigo – que no período da ditadura era o terrorista vermelho – agora é o traficante (não por coincidência, negro, pobre e periférico).
Figuras como as de Evaldo, homem negro da periferia, são, portanto, inimigos em potencial desse Estado militar. Para estes, a ditadura nunca acabou. E numa ditadura, ninguém está seguro na presença de um policial.
Quatro dias após a morte de Evaldo, um comediante branco foi condenado criminalmente em razão de ter injuriado uma Deputada Federal. O presidente da República, que nada disse sobre Evaldo, prestou solidariedade ao comediante em seu Twitter.
Arthur Spada
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Sobre a morte de Evaldo, recomendo ainda o Podcast Café da manhã da Folha de SP, na edição que tratou do assunto