A crise da lucidez

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Em seu romance Ensaio sobre a lucidez, uma livre continuação de Ensaio sobre a cegueira, Saramago narra a história de uma eleição na capital de um país fictício, na qual mais de 80% dos votos foram em brancos, o que apesar de ser possível dentro das regras do jogo eleitoral, causa espanto e revolta nos governantes daquele local, que acusam a população de pretender golpear justamente a normalidade democrática. 

Para “solucionar” o impasse, depois de algumas tentativas fracassadas, os dirigentes decidem se retirar da capital, junto com os aparelhos do Estado e as forças policiais, isolando-a do resto do país. São imbuídos de uma crença hobessiana, de que isso levará ao caos e que os cidadãos compreenderão os males desse “golpe” e clamem pela volta do governo. 

Mas a reação é justamente a contrária e a população passa a se comportar de maneira organizada, solidária, pacífica e democrática. Os cidadãos passam a colaborar mutuamente uns com os outros. No episódio da greve dos lixeiros, organizada, em verdade, pelo governo, as mulheres saem as ruas para limpar as calçadas da cidade. Os governantes, revoltados, reagem com ainda mais brutalidade, inclusive provocando um atentado terrorista. A perda do poder político motiva as reações de força, uma vez que o poder repousaria sobre bases de consenso e apoio popular, como mostra Hannah Arendt.  

Em suma, Saramago nos brinda com uma crítica a falta de democracia substantiva e não à democracia formal, cujo conceito mínimo pode ser descrito como a existência de eleições livres, com ampla possiblidade de participação. A crítica de Saramago é dirigida à classe política e a falta de ética daqueles que ocupam os cargos eletivos, preocupados apenas com a manutenção do próprio poder. O problema estaria nestes, e não na sociedade, que usa do voto em branco justamente para evidenciar a falta de representação política que consideram ética e não como forma de tomada do poder ou para a deposição do governo. Isso porque, frisa-se, a desilusão aqui não é com a democracia enquanto regime político, mas pela falta de sua dimensão substantiva. 

A crise da democracia representativa é assunto de debate no mundo todo (e já tratei disso sumariamente aqui: A crise da democracia e o perigo dos afetos). Pessoas que não se veem representadas pelos políticos e partidos tradicionais e que buscam alternativas muitas vezes fora do sistema, que se revelam autoritárias e negadoras dos princípios democráticos. Mas há outra reflexão que parece necessária para nós: a falta de lucidez. 

Grande parte da nossa população se vê representada por aqueles que hoje ocupam o Poder Executivo. A realidade, ao contrário do que Saramago escreve, não permite que uma sociedade lúcida eleja um governo ruim e, na verdade, o Brasil autoritário, racista, misógino, xenófobo e subalterno aos interesses estrangeiros parece estar muito bem representado. Mesmo que alguns tentem negar esses traços em si e na nossa sociedade, eles sempre estiveram presentes e mais escancarados que nunca. A manutenção desses comportamentos, em enorme medida em razão da não superação do nosso passado escravocrata e da falta de uma noção republicana de vida, é também fruto da falta de lucidez.

O que leva alguém a xingar uma enfermeira que protesta silenciosamente num momento de pandemia, senão a falta de lucidez?

A negação da ciência, a confiança em teorias conspiratórias, a falta zelo com a preservação da vida, humana e animal, são exemplos dessa falta de lucidez. Jessé Souza escreve o capital cultural é um traço diferenciador do qual as classes médias podem se apropriar, para se diferenciar das classes baixas. Para as elites econômicas, esse capital acaba sendo indiferente – e empresários semianalfabetos que se encontram às escondidas com presidentes mostram isso de maneira clara.

O capital cultural no Brasil por vezes acaba sendo apenas isso, somente mais um traço diferenciador de classe, e deixa de ser instrumento de emancipação humana. Se busca o diploma, o título, não o conhecimento, não a lucidez. Despreza-se, assim, fontes importantes de conhecimento e compreensão da vida que não são necessariamente formais ou passíveis de serem compradas (é preciso ficar claro que a crítica não é àqueles que buscam na universidade uma forma de mudança de vida e que, por vezes, são os primeiros a ter o diploma universitário em suas famílias). 

Com isso, a classe média acredita ter um valor a mais que as camadas populares, que não tem, e por outro lado, a elite econômica, que ignora esse tipo de capital – já que não precisa dele - permanece sendo mesquinha, autoritária e antirrepublicana. Segue achando que comprar artigo de luxo na Europa é o que dá sentido a vida. Não à toa, até a presente crise pandêmica, a aprovação das camadas mais privilegiadas da população, no quesito renda e escolaridade, era o que mantinha os níveis de popularidade do nosso nada lúcido presidente conservados. 

Temos que resgatar a lucidez como forma de preservar a nossa sociabilidade e as nossas instituições, antes que a sua deficiência nos conduza à barbárie e ela se perca para sempre. Tantos mestres lúcidos já perdemos, e muitos somente nos últimos dias. Essa lucidez que não se compra, certamente pode ser encontrada na nossa sabedoria popular, arte e cultura. Tão maltratadas e tão desprezadas. 

 “Onde está a sua lucidez?” perguntou a atriz Julia Lemmertz, em 02 de abril desse ano, para a atual Secretária da Cultura, Regina Duarte. Ontem, quinta-feira, a última deixou claro que não pode responder a essa pergunta.   

Arthur Spada

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