SUS - Como tudo começou

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Como dizia o já saudoso Aldir Blanc: “o Brasil não conhece o Brasil”.

Se pensarmos na história da saúde pública brasileira, essa frase se aplica perfeitamente. E falo de uma história que tem menos de 50 anos. Portanto, ainda temos acesso a muitos dos protagonistas dessa história. E são esses cidadãos e cidadãs, que dedicaram vida e obra à luta por um direito até então inédito no país, o direito à saúde, que têm sido, ao longo dos últimos 25 anos, as grandes estrelas do Canal Saúde. Eles vêm me contando essa história que, agora, divido com vocês.

Na década de 70, o Brasil era um país que vivia sob um regime ditatorial. A sola da bota dos militares, apoiada por setores civis, esmagava a garganta de quem ousava gritar por direitos. Mesmo assim, não foi pequeno o contingente de brasileiros que conseguiu subverter os desmandos e trouxe alguns respiros para a sociedade. Pois sempre que há uma força que quer esmagar a cidadania, há também uma força contrária que reage, cria, pensa e age para manter os sonhos vivos e para construir novas formas de vida em sociedade.

Foi justamente isso que a geração de sanitaristas dos anos 70 fez. Aproveitou o terreno fértil do movimento social que queria a democracia. E desenhou um caminho para que a volta da democracia também significasse mais justiça social. 

Por um lado, havia uma grande insatisfação social por causa da falência do modelo de assistência à saúde da época: concentrado, desigual e de baixa cobertura. Em um país com 100 milhões de habitantes, em torno de 30 milhões de pessoas tinha acesso ao atendimento em saúde, por meio do INAMPS. Os outros 70 milhões de brasileiras e brasileiros eram tratados como indigentes e dependiam de caridade e de instituições religiosas ou beneficentes. 

Por outro lado, uma massa crítica crescente se desenvolvia nas universidades, driblando o sistema político opressor. Pesquisas e teses mostravam a relação entre as condições de vida da população e as doenças, estabelecendo uma compreensão social do processo de adoecimento. 

Esses dois fatores impulsionaram avanços teóricos e práticos que viriam a culminar na proposta do SUS. 

Para estabelecer o embasamento teórico da ideia do SUS, foi fundamental a criação, em 1976, do CEBES, Centro Brasileiro de Estudos em Saúde. O CEBES foi um importante espaço de diálogo entre estudantes, trabalhadores e profissionais da saúde. O resultado desses diálogos era consolidado em uma revista chamada Saúde em Debate. Foi nessa publicação que surgiram duas sementes do SUS: as ideias do direito à saúde e da reforma sanitária brasileira. Alimentadas por essas ideias, várias instituições, como a Fiocruz e a Sociedade Brasileira para a Ciência, também já vinham se mobilizando e criando espaços de encontro e discussão. 

Ao mesmo tempo, pipocavam experiências buscando novas formas de atenção à saúde. Movimentos simultâneos ocorriam em vários municípios brasileiros, como Montes Claros (MG), Londrina (PR), Paulínia (SP), Vitória de Santo Antão (PE), Nova Iguaçu (RJ) e Ribeirão Preto (SP), funcionando como laboratórios para o SUS, pois experimentavam formas de atenção e gestão que, posteriormente, iriam inspirar os princípios do sistema. Soma-se a isso a descentralização dos cursos de especialização da Escola Nacional de Saúde Pública para estados como Bahia, Pernambuco, Pará e Rio Grande do Sul. 

Faltava, ainda, criar condições políticas para amalgamar teoria e prática. Um fator fundamental para impulsionar a luta política pela criação do SUS foi o surgimento da ABRASCO, Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, em 1979. Foi por meio da ABRASCO que surgiu o documento, apresentado em um simpósio de política nacional da Câmara dos Deputados, que tinha como título: a questão democrática da área da saúde. É onde aparece pela primeira vez, para uma divulgação mais ampla, a ideia de se criar o SUS. 

Todos esses movimentos possibilitaram articulações políticas mais abrangentes, as quais culminaram na união de diferentes atores políticos, independentemente de sua filiação partidária, em torno do “partido sanitário”. Essa articulação estabeleceu as bases para a histórica e revolucionária: Oitava Conferência Nacional de Saúde. 

Como visto, o SUS não nasceu da noite para o dia. E esse é apenas o início da história. Que segue com a atuação da comissão da reforma sanitária na assembleia constituinte, e desemboca na Constituição de 88, onde o direito à saúde é consagrado. Caso seja do interesse de vocês, sigo contando essa história na próxima coluna. 

Dando um pequeno spoiler: um grupo político muito presente nos noticiários brasileiros, ainda hoje, o chamado “centrão”, já atuava, naquela época, para frear avanços mais progressistas. Mas, por enquanto, solto essa informação apenas como cena dos próximos capítulos. 

Renato Farias

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