A epifania semiótica de “ALFAZEMA”
Meu primeiro encontro com ela foi em agosto de 2015 numa entrevista por Skype. Minha memória tem se mostrado péssima em registrar o início das coisas. Inconscientemente, penso, ser aquela teoria que diz que a graça e o encanto estão no trajeto. Dois meses depois escrevia sobre seu filme “Personal Vivator”. Movido pelas reflexões que obra e criadora me provocaram dissertei meu artigo final da pós-graduação tendo como objeto de estudo outro trabalho dela, dessa vez, o curta “Rainha”. Aí veio uma nova entrevista, um novo texto no Cinemação, novas leituras, novas construções.
Adentrar a filmografia de Sabrina Fidalgo é desnudar alegorias historicamente envernizadas por um sistema de representações que institucionaliza estruturas racistas e excludentes. E nessa passarela ritualística de diferentes vozes e corpos, sua narrativa se impõe em cores próprias, numa simbologia em diálogo vivo com nossas raízes populares e ancestrais.
O carnaval é a essência narrativa de “ALFAZEMA”. Agora ele se faz presente na coxia, no adorno da preparAÇÃO. A instituição carnavalesca traz em metalinguagem figuras místicas e sincréticas num desfile semiótico que vai do nome ao poder da imagem. A obra cria uma atmosfera de ruptura alicerçada no imaginário popular, e a partir dela subverte estereótipos sociais e de gênero. Recentemente, o curta ganhou dois candangos no Festival de Brasília ("Melhor Direção" e "Melhor Trilha"). E antes, já havia conquistado o prêmio do "Júri Popular" no Curta Cinema. Uma trajetória auspiciosa para uma obra que estreou a apenas um mês no Encontro de Cinema Negro.
A potência de Elisa Lucinda sob a fumaça do cachimbo de verdades mundanas desloca a figura sagrada e ilibada de Deus da representação machista e eurocêntrica vendida na imagem do homem branco, loiro, de cabelos longos e olhos azuis. O elenco é característica marcante e rasura ainda mais nosso imaginário ao trazer o anjo caído na partitura de uma Bruna Linzmayer desprendida da mocinha-clássica-romântica.
Entre deus e o diabo o remonte estético da diretora-atriz (na adrenalina de uma gravação em plano-sequência) explora as dicotomias do mundo permeadas por ironias e um ardor provocativo que pode desconcertar o cristão mais ortodoxo (o que não é o meu caso). Sagrado e profano caminham juntos num mundo cada dia mais hipócrita e errático nas suas contradições. O doce deleite carnavalesco de Flaviana, muito bem vivida por Shirley Cruz - atualmente no elenco da novela “Bom Sucesso” – é acompanhado pelo personagem de Victor Albuquerque que contrapõe a soberania feminina, e pela presença carnal da sua anja-da-guarda (Bianca Joy) que contesta a criação da Terra.
A ousadia de linguagem é acompanhada por questões pertinentes da contemporaneidade, como: a representatividade de gênero, a diversidade de crenças (exemplificada na variedade linguística em que um mesmo Deus pode ser evocado) e a oquidão religiosa muito em voga em tempos de teorias e práticas cristãs dissonantes. A obra ainda faz um ótimo paralelo da autarquia do Todo-Poderoso e da autoridade de uma diretora no seu habitat natural: o set de filmagem.
“ALFAZEMA” confirma que o carnaval não se reduz a um festejo popular que começa na Epifania do dia de Reis e termina nas cinzas da quarta-feira pré-Quaresma. Sua celebração é um estado de espírito, uma transcendência da alma, reluzente no brilho efêmero da liberdade, do separar de mãos daquilo que nos sufoca e nos encaixota em normas, em dogmas. Se embriagar na sua essência é exorcizar o puritanismo e a falsa moralidade na pasárgada que faz anjo da guarda e anjo caído pularem juntos no mesmo chão.
Felipe Ferreira
Instagram @ostrafelipe
Siga no instagram @coletivo_indra
Link dos textos citados:
“Personal Vivator”:
https://cinemacao.com/2015/10/12/rochass-18-personal-vivator-e-os-olhares-de-um-pais-colonial/
“Rainha”:
https://cinemacao.com/2016/10/27/rochasemdebate-rainha-um-banquete-antropologico-alem-carnaval/
Link das entrevistas anteriores com Sabrina Fidalgo:
https://cinemacao.com/2015/08/10/a-mulher-negra-no-cinema-brasileiro-por-sabrina-fidalgo/