A favela resiste
Foto de Carol Beiriz - Projeto Lixão Gramacho - Conheça mais sobre o projeto
A todos os favelados e pessoas que morreram da Covid-19 e que não puderam fazer quarentena no conforto de suas casas.
Não tenho privilégios! Nem posso ficar em casa cuidando dos meus filhos, nós somos quatro, e a mais velha, que tem onze anos, cuida dos outros dois. Mirela sabe proteger os irmãos e a si mesma. Aprendeu a fazer comida cedo. Eu mesma ensinei para ela. Se sair para a rua, minha comadre liga no meu número e dou bronca nela. Pronto. Lavo o chão da casa, o banheiro e a varanda.
Não posso ficar deitada na cama até o meio-dia, postando foto nas redes sociais, quem vai pôr comida na mesa para os meus filhos?
O desgraçado do pai deles às vezes some sem dar satisfação, lavei as mãos por ele, não quero ver mais a cara do imprestável, pai é quem cuida e ultimamente eu tenho sido pai também. Não falo mal do Cláudio para as crianças, mas elas estão crescendo, não são bobas, ao contrário, aprendem fácil, sabem o que está acontecendo à volta delas.
A água do tanque caindo é que me faz lembrar o cafajeste. Tanto sofrimento, tanto esforço, tanto nada! Eu penso em tudo isso desinfetando o sapato do patrão, que nem sujo está. Eles pedem para eu lavar direitinho e depois deixar de molho na água com sabão. Quando chegam as compras, também tenho que desinfetar enlatados jogando dentro de um balde, onde coloco algumas gotas de água sanitária.
Com a luva pego um pedaço de pano e passo álcool na embalagem das coisas: frutas picadas, mortadela, mussarela, linguiça bovina e sei lá eu mais o quê. Guardo dentro de potes com variadas cores — amarelo, azul, vermelho, branco e laranja. Lembro-me da vez que a dona Magnólia, a minha patroa, pediu para eu separar as coisas pelas suas cores preferidas, pois assim, — me explicou ela, — não confundiria frutas com grãos.
Meus meninos não têm conforto, devem ter comido arroz, feijão e ovo, por isso tive vontade de dizer a ela algumas verdades: na favela come-se o que tem. Esse o motivo de tanto esforço, tanta insônia, tanta dor, tendo que acordar às quatro da manhã para o conforto de outras pessoas. Não falei nada, claro, pior é estar desempregada, ainda mais nesses tempos, em que o luto parece não ter fim na comunidade.
Lá onde eu moro, quatro pessoas se infectaram, foram para o hospital, mas não tinha leito para elas, não tinha respiradouro, não tinha nada. Os vizinhos disseram que as pessoas estão morrendo de falta de ar e que é bom manter a distância. Nem todo mundo está respeitando as regras: alguns bares e igrejas continuaram de portas abertas e foi justamente por isso que a doença se espalhou na vizinhança e pelos arredores.
Eu fico aqui pensando nas crianças, de vez em quando não consigo forçar, as lágrimas rolam outra vez e se misturam com a água que uso para lavar o chão da casa, o corrimão da escada, o banheiro e a bacia do banheiro. Tenho vontade de descansar, mas eles têm câmera e uma vez que sentei por cinco minutos na soleira da porta, dona Magnólia mandou mensagem para o meu celular, dizendo para eu continuar desinfetando, ou me mandava para o olho da rua. Nunca desejei o mal para ninguém, mas aquela manhã, só com a vassoura e uma luva toda escangalhada, que ela deixou em cima do tanque, sem nem me dar “bom dia”, olhando pelo rabo do olho, penteando o cabelo, que nem uma dondoca, indo para a suíte onde ela dorme com o marido, também tive vontade de jogar um balde de água fria nela.
Na televisão, eles dizem que irão ajudar os mais pobres, falam dos invisíveis, que invisíveis? Nós existimos, comemos e bebemos, não somos invisíveis como eles pensam. A favela vai resistir, como sempre resistiu, mesmo com os corvos querendo voar em torno da carniça, não seremos aniquilados. Afinal, os números estão aí, e as pessoas, como eu mesma, continuam indo para seus trabalhos às quatro da manhã, tossindo muito, se arrastando pelas ruas, faxineiros, enfermeiras, acompanhantes, pedreiros, Marias e Joãos, que construíram esse país e que deviam estar em suas casas esperando a tempestade passar, continuam lá, muitos servindo os ricos, que não sabem limpar a própria bunda. O povo está acordando, o povo vai resistir, somos flores em meio ao barro, ao lixo e à pobreza.
Wesley Barbosa
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