“ILHAS DE CALOR” entre muros e vagões com Ulisses Arthur

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Nos encontramos por acaso no vagão do metrô. Eu, a caminho do primeiro festival de cinema do qual eu fazia a cobertura jornalística. Ele, rumo a exibição do seu filme que integrava uma das mostras competitivas. Recém chegado do aeroporto e sem muita certeza do caminho que fazia, ele me pediu informação. Logo a ficha de que íamos ao mesmo “Panorama” no mesmo “Glauber Rocha” caiu. Fomos de estação a estação proseando sobre cinema, o festival e as expectativas.

 Na estação final nos despedimos. Corri pra chegar no horário da primeira sessão e ele seguiu com vagarosa tranquilidade no equilíbrio da bagagem. Já no festival nos esbarramos nos corredores e o reencontrei com mais intimidade e concentração ao assistir seu curta “CorpoStyleDanceMachine”. Uma das melhores exibições do dia. Voltei pra casa inspirado! Três anos depois vi seu nome na notícia de um outro festival e voltei no tempo. Lembrei do vagão, da experiência fílmica, do cinema que nos reconstrói por dentro. Li a notícia, entrei nos muros do seu novo filme e convidei ele para uma entrevista. 

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 Alagoano,com 26 anos e uma estética cinematográfica marcante, Ulisses Arthur fala sobre “Ilhas de Calor”, das suas vozes e lugares narrativos, e da cena audiovisual pós distópica.      

 I - "Ilhas de Calor" é seu mais recente trabalho e foi um dos indicados do primeiro turno do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Como foi pra você ter uma obra selecionada pela curadoria de um festival de grande importância na cena audiovisual? O que isso representa simbólica e concretamente para o cinema que você faz?

Gosto de pensar cada espaço que o filme recebe como um espaço que a minha voz ecoa de alguma maneira. Ocupo os que posso, sempre dialogando com as pessoas que estão nele. É muito especial a seleção para o Grande Prêmio pelo status e visibilidade que o filme ganha ao fazer parte da seleção e recebendo todo esse aporte de mídia. Mas uma das coisas mais especiais é abrir publicamente o filme na internet, por que ele vai chegando nas pessoas, muitas vezes em pessoas que não puderam ver nos festivais. Me interessa que chegue nas que estão fora dos circuitos culturais e vão poder ver esse filme em casa,  assistir do jeito que podem. É claro que que eu gostaria que todas vissem na tela grande de algum cinema, mas com certeza sei que alguma troca vai acontecer mesmo na tela do telefone. Quando o filme está aberto no Grande Prêmio é bom ver essa recepção mais plural. Nós da equipe ficamos trocando mensagens o tempo todo sobre a repercussão que o filme está ganhando entres os nossos amigos, conhecidos e desconhecidos. É muito bom saber as reações e poder iniciar alguns diálogos que começam com foco no filme e se expandem para discussões mais agudas da nossa sociedade.

II - Eu conheci seu trabalho com a exibição de "CorpoStyleDanceMachine", em 2017, no Panorama Internacional Coisa de Cinema (Salvador-BA). O filme chamou a atenção pela ousadia no nome e na sua composição estética. "Ilhas de Calor" remete a uma antítese imagética e sensorial. "Ilha" simboliza a solidão individual e "Calor" a reação provocada e compartilhada entre pessoas. A representação do Fabrício (protagonista do curta) é um reflexo do conflito existencial e de pertencimento que acompanha o jovem negro, gay e periférico?

Acho que todos os curtas que realizei são de algum modo sobre personagens/pessoas que se constroem (ou reconstroem) de acordo com o contexto onde estão. Acho que o “CorpoStyleDanceMachine” e o “Ilhas” encontram-se bastante nessa questão. Mas enquanto Tikal fala do passado recontando sua história e destacando com alegria os momentos de desbunde (apesar das cicatrizes), Fabrício ainda está atravessando os primeiros desafios, e considero a escola como o lugar que reúne os primeiras barreiras subjetivas na relação com os outros. Massa que você captou essa ideia das Ilhas de Calor, no processo tanto de escrita quanto de produção tinha uma questão muito interior que eu sempre adicionava: Se somos ilhas como seremos se formarmos um arquipélago? A partir dessa provocação eu realmente pensava em como que o espectador poderia sentir essa vivência escolar mediada por um despertar amoroso. Pensar em como essa sexualidade pulsante poderia sentir e perceber o ambiente da escola em suas camadas.

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IIII - A narrativa do curta se passa no ambiente escolar. Um lugar que pode ser traumático para muitos adolescentes. Entre violências verbais, físicas e preconceitos a escola se torna um território hostil, intimidador e nocivo ao estudante que difere da normatividade conservadora a qual somos adestrados desde pequenos. Fazer essa abordagem é uma forma de discutir a importância e a influência que essa fase da vida exerce no futuro dessas gerações? Sua vivência escolar de alguma forma colaborou na (re)construção desse universo no filme? 

Com certeza, o roteiro foi criado a partir do poema que Fabrício lê no início e no fim do filme, e esse poema eu fiz na escola. Pude reencontrar ele e achei engraçado como soava dramático e "profundo" pra se ler em sala de aula. A partir desse poema fui levantando algumas imagens da minha época de escola, como o clássico meninos vs. meninas, os constrangimentos, pressões, os ruídos. Mas também é muito inspirado em relatos compartilhados de amigos sobre a escola, de muitos diálogos com adolescentes quando dou oficinas de cinemas para jovens. É legal que muitas pessoas sempre vem falar sobre como o filme consegue transportá-las para a escola e acionar algumas memórias boas e cruéis desse tempo. Isso é muito bom pra gente que faz, muito gratificante.

IV - Como você vê o cinema brasileiro nesse momento atual de pandemia? A retomada do setor após o isolamento social, tendo em vista o desmonte da cultura e a negligência do atual governo com a classe artística, demandará uma força-tarefa organizada e unificada entre roteiristas, produtores e todos os setores fundamentais na produção audiovisual brasileira?

Acho que nesse exato momento tá tudo ainda muito nebuloso pra análises mais precisas, já estava antes, depois do vírus ficou ainda mais complexo. Tem um desmonte em jogo e isso está na nossa cara. Tenho dialogado com as redes que faço parte, estamos buscando não parar de criar e gestar os projetos por que isso de algum modo nos deixa com esperança e saudáveis por manter a mente em atividade. Criar no momento tem sido uma forma de proteção mental. Mas tenho muitas esperanças, acho que surgirão obras contundentes e provocativas, e com certeza outras possibilidades de realização, comunitárias e sustentáveis. Haverá muita reinvenção com certeza.

Felipe Ferreira

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