A guerra civil brasileira
A polarização da população, que há alguns anos vem sendo vivenciada no Brasil, tem levado muitas pessoas a falar em uma possível guerra civil.
Esse tema, guerra civil, aparece nos noticiários brasileiros geralmente associado a conflitos que ocorrem em África. E a nossa ignorância generalizada sobre a história dos países do continente africano facilmente aceita a questão étnica como explicação (simplista) para tais conflitos.
Sabe-se que a divisão do continente africano foi feita nos anos de 1884 e 1885 pelos colonizadores europeus num encontro de potências da época chamado Conferência de Berlim. A partilha do continente africano entre as nações europeias fez com que etnias diferentes, muitas vezes rivais, fossem obrigadas a conviver sob a bandeira de um mesmo país.
É possível imaginar que, com as respectivas independências, a convivência entre povos tradicionalmente inimigos, sem o jugo do governo colonizador, resultaria em novos conflitos. Sim, realmente a criação dos países africanos foi autoritária, levou apenas em conta os interesses europeus e, muitas vezes, uniu num mesmo território povos que não tinham convivência pacífica. Mas esta é apenas uma parte da história. É preciso falar também sobre a descolonização.
Frantz Fanon, filósofo da diáspora africana, nos ensina que toda a descolonização é, sobretudo, uma violência. Os países colonizadores ao “saírem” dos territórios colonizados, deixam marcas profundas nos povos colonizados. Marcas que perpassam toda a sociedade e sua organização social, política, familiar, bem como cada indivíduo. A autoestima (ou falta de) e a noção de pertencimento ou não a essa sociedade chega a criar uma hierarquia de valor entre as pessoas, como se uns fossem melhores do que os outros.
Sem dúvida um assunto complexo para nós brasileiros que ainda precisamos aprender o be-a-bá sobre nossos irmãos africanos.
Mas há uma lição fundamental nessa tentativa de analogia entre o que acontece lá e o que parece estar acontecendo cá.
Os países africanos, agora independentes politicamente, herdaram dos países colonizadores estruturas de poder onde alguns grupos (geralmente os que estavam próximos do poder durante a colonização) se mantiveram “donos” das instituições que sustentam o atual “funcionamento” político. Como instituições, leia-se desde as estruturas do governo e seus poderes executivo, legislativo e judiciário, bem como exército, polícia, burocracias em geral, imprensa e meios de comunicação.
Essas instituições, conduzidas por esses grupos, seguem dominando o funcionamento do país, mantendo a desigualdade sob a qual a colonização foi exercida e criando narrativas sobre nacionalismo, progresso e necessidade de reformas que acabam sendo consumidas por grande parte da população como verdades.
Verdades que, via de regra, servem apenas para a manutenção do poder nas mesmas mãos e para a sustentação de uma classe política temida, privilegiada, aliada a um número não muito grande de empresas internacionais que dão as cartas na economia mundial. Empresas que seguem enriquecendo os mesmos países colonizadores. Não é à toa que cada vez mais vemos as mesmas empresas em diversos países ao redor do mundo, sejam países ricos ou pobres. Ao mesmo tempo, somos submetidos a um pensamento dominante que diz que o “mercado” é a solução para tudo.
Não é difícil compreender, portanto, como se sentem os grupos tradicionalmente excluídos, obrigados a viver na pobreza, quando não na miséria, pelos que não hesitam em usar a violência para a manutenção dos privilégios de estar há muito tempo usufruindo o poder.
E o que nós brasileiros temos a ver com isso?
Também somos um país que viveu a maior parte da sua existência como colonizados. E, com a nossa descolonização, também herdamos burocracias e instituições que se mantiveram (e ainda se mantém) nas mãos das mesmas famílias descendentes dos europeus.
Parte de nossa polícia ainda defende o patrimônio enquanto assassina cidadãos apenas por serem descendentes de pessoas escravizadas. Nossos meios de comunicação de massa também defendem os grandes interesses corporativos a ponto de, em sua grande maioria, terem apoiado o golpe de 2014.
O golpe rasgou limites perigosos para a manutenção da democracia e, a cada dia que passa, é aprofundado em detrimento dos direitos das pessoas. O golpe sequestrou nossa esperança. Fomentou um ódio que tomou conta de grande parte da população brasileira. E resultou numa eleição sustentada por mentiras e em um representante máximo do poder executivo que, ao se manifestar, usa basicamente palavras como destruição, tortura, armas, estupro e “tem que acabar com isso daí”.
Portanto, no momento em que o tsunami da educação saiu às ruas para demonstrar que nossos jovens não estão dispostos a legitimar desmontes de direitos e nem a entregar a saúde, a educação e a previdência social para interesses particulares, os “herdeiros da descolonização” voltam a apostar na radicalização e na polarização, incitando brasileiros contra brasileiros para que os pretensos “inimigos da pátria” sejam derrotados.
Que espécie de “rivalidade étnica” é essa que alimenta o ódio. Que sustenta um pensamento de que brancos são melhores do que negros, que indígenas não têm direito à terra, que homens podem mais do que as mulheres, que heterossexuais são mais íntegros do que homossexuais? Que não hesita em tirar da algibeira o comunismo, sob alegações análogas ao de que comem criancinhas, como o mesmo inimigo perigoso que fomentou o outro golpe, o de 1964?
Eu não apoio nenhum tipo de guerra, sou contra qualquer tipo de violência, entendo o desarmamento como a medida mais importante para uma sociedade pacífica, mas entendo a necessidade da luta. E luto contra o racismo, por um sistema único de saúde fortalecido, por educação pública gratuita e de qualidade, pelo direito das pessoas serem quem são e pela manutenção e fortalecimento da democracia. E você? Luta pelo quê?
Renato Farias
Instagram @fariasre
Siga no instagram @coletivo-indra
DICA DO COLETIVO INDRA