A lógica do açoite e a Erotopia
Na era do cancelamento e da lacração, vale a pena recuperar que a lógica do açoite está muito viva.
O filósofo Achille Mbembe e a psicóloga Grada Kilomba têm razão: sem analisar o fenômeno da escravização negra e da Plantation nas Américas fica difícil entender a emergência da modernidade como uma estrutura de dominação e controle.
O advento da aventura da Europa em “civilizar” o mundo está intimamente relacionado com um projeto colonial e racista – como ensina Frantz Fanon, um modo de produzir “condenados da terra”. Estudos pós-coloniais e decoloniais ajudam a compreender como as fronteiras junto com fenótipo étnico-racial, gênero e classe informa que alguns estão “salvos” e a maior parte já nasceu condenada e merece o açoite e o linchamento.
A cultura do linchamento faz parte da estrutura racista, patriarcal e da exploração do trabalho, por isso, não fico espantado quando as redes sociais noticiam que estão cancelando artistas.
Estou longe de apoiar falhas morais e crimes. Porém, chamo atenção que as pessoas que nascem aptas para a condenação não são facilmente perdoadas. Dessas pessoas se exige perfeição, enquanto outros têm proteção garantida, como canta Caetano Veloso na canção Estrangeiro: “macho adulto branco sempre no comando”.
A colonização traçou uma fronteira entre pessoas e coisas que pareciam pessoas. Se, por um lado, não eram humanas de verdade, mas ferramentas de trabalho. À medida que os direitos humanos são estabelecidos, a cultura colonial exige delas, nada mais e nada menos do que perfeição! Que errar é humano ninguém discorda. Mas, se uma pessoa não pode errar, ela tem direito à humanidade? O que está subentendido? Essa pessoa não é gente? Então: só existem duas alternativas, ou essa pessoa vive o papel de eterna vítima coisificada ou se esmera por ser perfeita, ser humana não lhe caberia.
Daí, o cancelamento de algumas pessoas está plenamente justificado com as devidas entrelinhas: “de ti só esperávamos perfeição!”.
Nada mais patriarcal do que exigir que mulheres não errem, nada mais racista do que recusar para as pessoas negras o direito à falha, nada mais cisheternormativo do que exigir da população LGBTIQ+ uma aureola angelical, nada mais excludente do que exigir das pessoas com deficiência que “compensem” sendo puríssimas de coração.
Ora, o direito à condição humana de todas as pessoas está em reconhecer que não devemos usar a lógica do chicote, expondo as pessoas no pelourinho das redes sociais, desclassificando-as sem uma ponderação cuidadosa. Um crime deve ser punido na medida do seu dano, é preciso usar um peso e uma medida que seja coerente. Por favor, não interpretem esse texto como um aval para crimes. É preciso reiterar o meu compromisso político com os direitos humanos e contra o racismo, patriarcado, sexismo, xenofobia e todas as formas de discriminação. Eu não me espanto com os burburinhos das redes sociais cancelando, por exemplo, mulheres negras e homens negros. Mas, deixo uma pergunta, essa é a melhor maneira de um debate qualificado?
A partir dos estudos de Cheikh Anta Diop, nas culturas tradicionais africanas, o linchamento não era um recurso punitivo. Uma maneira de enfrentar um problema, uma falha, um erro pode ser usando a ética ubuntu:
as pessoas precisam ser convocadas a revisitar e restaurar suas ações, mais do que compensar, elas precisam reparar.
Não podemos cair no binômio, nós “os bons” contra eles, “os malvados”. O debate pode ser mais ético e político do que moral e personalizado. Eu tenho dificuldades com o mal encarnado, as pessoas são completamente boas ou totalmente demoníacas? A resposta pode ajudar na escolha entre a lógica da reparação e a do açoite. Ao invés de punir com cancelamento, quero perguntar: como podemos reparar nossos erros?
Sem idealização romântica alguma, vale dizer que num modelo afroperspectivista, nós devemos apoiar as pessoas a reparem seus erros e não açoitá-las, demiti-las ou cancelá-las. Se for caso de crime, devemos usar o código jurídico legal e avaliar combinações entre reparação e reinserção social. Importante dizer, longe de “passar pano” ou permissividade com falhas de caráter, que nem é o caso de querer converter os adeptos do fascismo. Nós queremos evitar o autoritarismo, nós estamos reconhecendo que todas as pessoas precisam de ajuda e que sem consciência da interdependência e necessidade do caráter colaborativo das relações sociais e políticas as ideias de meritocracia e de que uma pessoa se faz por si só sem ajuda são problemáticas. Nós vamos continuar divididos entre puros e impuros?
Estes últimos se parecem muito com as vítimas de feminícido, da violência policial, da necroinfância, do desemprego e da ausência de direitos fundamentais como moradia e lazer .Vale reiterar, longe de perdoar simplesmente, estamos clamando por um diálogo, convocando as pessoas não para sessões de penitência. Quem erra precisa ter oportunidade de reelaboração das suas práticas.
Isso substitui o açoite pela construção coletiva de um mundo erotópico, um mundo marcado pelo amor não idealizado e pelo uso responsável da raiva e da indignação.
Renato Noguera
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Referências bibliográficas
ALGRANDI, Leila Mezan. O Feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1988.
DIOP, Cheik. A unidade cultural Africana. Ramada: Edições Pedago, 2015.
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor. São Paulo: Editora Elefante, 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: Lisboa: Antígona, 2017.
SARR, Felwine. Afrotopia. São Paulo: N.º 1 Edições, 2018.
SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade. São Paulo: Editora Odysseus, 2007.