A Liberdade de expressão e o nazista no bar
Ao longo dessa semana, viralizou a foto de um homem sentado num bar, aparentemente tranquilo, usando uma braçadeira com a suástica nazista, tal qual a que era usada na Alemanha de Hitler.
A atitude lamentável é somada à da polícia que, chamada ao local, não abordou o homem, a despeito de sua atitude ser crime, conforme a Lei n.º7.716/1989, que prevê punição para quem “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.”
Esse fato pode ser refletido e analisado por diversos prismas, sobretudo pela gravidade de alguém achar normal ostentar um símbolo que representa o extermínio, o preconceito e a destruição de todos os valores compartilhados e que tornam possíveis a convivência humana, sem que seja incomodado pelas autoridades responsáveis por garantir o cumprimento das leis. Infelizmente, já circulam imagens de sujeitos agindo de maneira semelhante.
Aqui, entretanto, vou me concentrar em um aspecto eminentemente jurídico que surge do fato, que são os limites ou restrições à liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, já que muitos, ainda que não concordantes com a postura daquele cidadão, pudessem compreender que não há nada a fazer, ante a possibilidade de manifestação, que é assegurada a todos. Engano, pois nada é absoluto!
Os direitos fundamentais (vida, dignidade e liberdades, dentre elas a de expressão) devido à importância que a eles é reconhecida – especialmente porque muitos conquistados a duras penas e derramamento de sangue – são levados ao texto das Constituições como garantias opostas ao Estado, que não pode obstrui-los ou impedir a fruição por quem quer que seja.
Mas mesmo esses direitos não possuem caráter absoluto e não podem ser exercidos de maneira arbitrária e sem parâmetro. O que se pretende éjustamente o contrário, ou seja, o exercício equânime por todos.
Se esses direitos não são absolutos, onde estariam seus limites? Estes teriam limites ou seriam confrontados por outros direitos? Disso decorre um debate doutrinário que procurar encontrar se esses limites são internos ao direito ou se há apenas restrições a ele. É o que se chama de teorias internas e externas dos direitos fundamentais.
Aqueles que defendem que as teorias internas, entendem que os próprios direitos conteriam limites e, portanto, não haveria proteção a ser conferida quando estes fossem extrapolados. Para exemplificar, no caso do nazista do bar, inexistiria direito dele se posicionar dessa forma, pois o nazismo estaria fora dos limites da liberdade de expressão.
Já dentre os que se posicionam ao lado das teorias externas, os direitos sofreriam restrições queestão fora dele. Aqui, existe o direito e além dele, as suas restrições. No mesmo exemplo, o homem do bar poderia se posicionar daquela forma, ante existirliberdade de expressão, mas a sua conduta poderia ser restringida por atingir outros direitos também reconhecidos em nosso ordenamento.
A diferença entre as duas posições ficou clara? Uma o direito tem limites dentro dele próprio, na outra, há apenas restrições que obstam e conformam o âmbito desses direitos. Mas qual a diferença prática disso? Os dois modos de pensar não levariam ao mesmo lugar?
Existe um famoso caso no Brasil, apreciado pelo STF, que ficou conhecido como caso Ellwanger, que debate justamente a questão do nazismo. Ellwanger era um professor do sul do Brasil e que possuía uma editora de livros que passou a editar obras de apologia ao nazismo, que negavam o holocausto judeu e se propunham a um revisionismo histórico. Ele próprio escrevia alguns dos livros, e chegou a argumentar que nunca existiram câmaras de gásnos campos de concentração, por exemplo. Ele foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em razão daquela lei que citei no início, e o caso foi levado ao STF.
No Supremo, houveram ministros que se posicionam tanto ao lado de uma das teorias, ou seja, compreendendo que inexistira liberdade de expressão e não era possível a venda de livros com apologia ao nazismo, como outros que se posicionaram pelas restrições (teoria externa), compreendendo que deveriam ser analisadas as restrições, já que, a priori, haveria mera liberdade de expressão.
Celso de Mello, que ainda é ministro do STF e o atual decano, se posicionou pelos limites internos, e afirmou em seu voto que a liberdade de expressão “por mais abrangente que deva ser o seu campo de incidência, não constitui meio que possa legitimar a exteriorização de propósitos criminosos.”
Ayres Britto, que já não é mais Ministro, esteve ao lado da outra teoria, quanto as restrições externas e ao votar, afirmou que “o abuso e o agravo são questões que somente a posteriori se colocam” e caso esses ficassem demonstrados, haveriam outros mecanismos previstos no ordenamento jurídico, como a reparação de danos e o direito de resposta, que restringiriam essaliberdade de expressão.
Pelo voto de Celso de Mello, a condenação de Ellwanger seria mantida, já por Ayres Britto, ela deveria ser anulada. Viu como essas teorias podem levar a efeitos práticos completamente distintos? Celso de Mello compreendia pela inexistência de liberdade de expressão quando se trata de nazismo, pois inexistiria o próprio direito ao falar em favor daquele regime. Ayres Britto, defendeu que eventuais danos, podem ser reparados, mas a liberdade de expressão não teria um limite nela mesma.
Que fique claro que isso não significa que o Ministro concordava com a apologia ao nazismo, mas apenas que a liberdade de expressão não estaria limitada, devendo o cidadão sofrer as consequências do que teria direito de falar ou de expor. A condenação de Ellwanger foi mantida, e, a despeito de diversos outros fundamentos também terem sido debatidos, a posição de Ayres Britto foi minoritária.
Obviamente o debate dessas teorias não se encerra aqui, mas ele nos mostra que nenhum direito é absoluto e, assim, a repulsa causada pela imagem de alguém sustentando um símbolo vil, pode ao menos – e deve - servir de gatilho para debater o preconceito e a discriminação, como lançar luzes ao que de fato foi aquele período histórico. Fato também é, que o Supremo confirmou a condenação de Ellwanger e repudiou veementemente o nazismo, aplicando a lei que impede a sua difusão, o que deve servir de parâmetro para esses novos casos, sendo coibidade plano a sua apologia.
Aliás, essa é uma das importâncias da Democracia, pois somente quando o governo é composto por quaisquer dos cidadãos e voltado para o atendimento das necessidades das pessoas, é que se pode esperar o cumprimento, bem como a possibilidade de reivindicar aquilo que é escrito numa Constituição. Seja a liberdade de expressão, ou a reparação pelos danos causados em virtude daquela. O nazista do bar, por não ser ariano, certamente não contaria com a condescendência do próprio regime autoritário que ele quer propagar.
Se eles se manifestam, não podemos ficar neutros e devemos falar mais alto: em nome da vida, da não discriminação, do combate ao racismo e de qualquer forma de autoritarismo!
Arthur Spada
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