A monogamia pode ser revolucionária parte I
A proposta desse artigo é analisar a afirmação, “a monogamia pode ser vivenciada como um modelo de conjugalidade profundamente revolucionário, porque permite a construção de um relacionamento genuíno e afetivamente nutritivo para as duas pessoas envolvidas”.
Pois bem, não podemos avançar em defender esta hipótese de que a monogamia pode ser revolucionária sem um breve elenco de algumas críticas bem consistentes ao sistema mononormativo.
De acordo com os estudos de Marianne Pieper e Robin Bauer, mononormatividade indica que o relacionamento afetivo-sexual padrão, socialmente estabelecido como norma é compulsoriamente monogâmico. Ou seja, o modelo por excelência da conjugalidade é explicitamente reforçado como sendo monogâmico por todas as instâncias sociais, o que vem junto com perspectivas heteronormativa vinculada ao imaginário do amor romântico, isto é, um experiência emocional que reúne ternura, admiração e funciona como maneira de realizar um tipo de fusão entre duas pessoas, protegendo o casal da solidão.
Em certa medida, a monogamia pressupõe o amor romântico, patriarcado, heternormatividade e a instituição da propriedade privada.
Desse modo, a mononormatividade projetaria uma fantasia em que as necessidades eróticas do casal são todas satisfeitas pela pessoa amada num encontro heterossexual em que matrimônio se articula com patrimônio e legado para descendentes.
Em 1990, Morning Glory Zell-Ravenheart inclui o termo “poliamor” no glossário de terminologia relacional da Igreja de Todos os Mundos, uma organização neopagã. Christian Klesse tem estudos relevantes sobre o poliamor.
De modo mais geral, poliamoristas defendem que sentimentos e desejos por várias pessoas devem ser admitidos, divergindo da ideia de que normas sociais devem determinar o que podemos sentir. Daí, em relacionamentos poliamoristas, os arranjos podem ser feitos sem obedecer às regras sociais do casamento como um contrato jurídico de fidelidade pautado no amor romântico heternormativo.
Não temos dúvidas, diversos estudos apresentam as representações da monogamia como heteronormativas, excluindo Lésbicas, LGBTI + (acrônimo de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis, intersexuais, queer e outras orientações sexuais, identidades e expressões de gênero). Afinal, os pares românticos hegemônicos da indústria cultural são cisgêneros, heteronormativos e brancos.
O privilégio branco e o racismo são elementos fundamentais que condicionam a experiência afetiva, as pessoas brancas têm sido beneficiadas com a circulação de imagens fenotípicas do seu grupo racial como tipo humano padrão a ser amado.
Diante dessas bases, a pergunta: o que podemos esperar da monogamia?
Como ela pode ser revolucionária?
Vamos passar para outro registro. Algumas considerações de Angela Davis, Achille Mbembe, Ailton Krenak, Antônio Bispo dos Santos, Byung-Chul Han e Mogobe Ramose, ajudam a afirmar que o mundo se transformou num grande mercado, as coisas que não têm preço encontram-se na prateleira de um mundo que vende sentimentos, pessoas e dá pouco valor à vida dos que não podem pagar. No mundo neoliberal, a relação com o mundo se transformou em poder e consumo; o que importa é trabalhar para comprar. Ailton Krenak e Nego Bispo apontam essa obsessão do homem branco pelo trabalho.
De volta à hipótese da monogamia como uma proposta revolucionária de amor, podemos conjecturar que num mundo onde as relações são de consumo, a experiência amorosa ganha contornos de “rodízios afetivos” ou “self services de relacionamentos”.
Nós podemos escolher alguém e manter o relacionamento enquanto estiver “tudo bem”. Uma pessoa pode se tornar descartável depois que a paixão acaba. Ninguém deve se sentir obrigado a compartilhar uma vida amorosa com a pessoa que amou no passado. O que importa é a “felicidade”, o ditado popular diz que a “fila anda”.
A hipótese que defendo é que o amor pode ser definido como uma experiência que precisa do sentimento de raiva para prosperar.
Mas, a raiva que se articula com a criação, com uma revolta diante das coisas que incomodam, nesse sentido: conviver com uma pessoa é a possibilidade de viver o sentimento da raiva. O relacionamento com várias pessoas, assim como a liberdade de manter e encerrar os laços facilita bastante o sentimento de bem-estar individual.
As possibilidades de relações não-monogâmicas reconhecem que a autonomia individual é incontornável, ninguém deve se submeter a um conjunto de regras externas que determinam que um casal deve manter-se junto por toda a vida, mesmo que esteja insatisfeito. Ou seja, não faltam razões para criticar a mononormatividade.
Então, como a monogamia pode ser revolucionária?
O raciocínio é o seguinte. A monogamia pode ser um terreno em que a raiva se articule com o amor de um modo tão singular que permita a elaboração de uma parceria político-afetiva que nos humanize profundamente. Como? No próximo artigo, continua. . .
Renato Noguera
Instagram @naguera_oficial
Siga no instagram @coletivo_indra