A república militar brasileira
Um dos acontecimentos que movimentaram o cenário político nessa semana foi a polêmica que envolveu o ministro do STF Gilmar Mendes e a ala militar do governo, quando ele afirmou que o exército estaria se associando a um genocídio, ao comentar a lamentável situação da pandemia por aqui.
A declaração talvez tivesse passado batida não fosse a reação desmedida da caserna, posto terem os comandantes do Exército, Aeronáutica e Marinha divulgado uma nota criticando a fala do ministro, além de ter o Ministério da Defesa apresentado uma representação contra Gilmar Mendes perante a Procuradoria Geral da República. Além disso, o vice-presidente da república, o General Hamilton Mourão, pediu retratação.
Como relembrou Élio Gaspari em sua coluna na Folha de São Paulo de terça-feira, um ano atrás Mourão havia dito que se o governo falhasse, a conta seria repassada para as forças armadas e por isso precisavam ter cuidado. Agora, diante do descalabro que se tornou a gestão federal, somada a tragédia que é o combate a pandemia, inclusive com um general fazendo cena como ministro interino na saúde, o incomodo com a fala de Mendes beira o cinismo.
Em artigo publicado em seu site, o cientista político Sérgio Abranches escreve que os militares “não se reconhecem como participantes no governo, na qualidade de corporação, porque consideram como funções civis de nomeação política (...) Não veem como missão corporativa, mas como opção individual. Mas é difícil dissociar uns de outros. Há uma evidente militarização da gestão pública federal.”
Abranches chama atenção ainda para o tamanho do ativismo militar nesse momento, com declarações e pronunciamentos frequentes, o que não havia sido observado desde a redemocratização em 1.988. Todavia, a participação militar na política parece ser a regra da nossa trajetória republicana, ainda que por vezes nas sombras.
A própria proclamação da república foi um golpe militar, procedido por um Marechal Deodoro que semanas antes ainda defendia a monarquia e que evitou derrubar pessoalmente o Imperador Pedro II, de quem era amigo pessoal. Mas o apoio do exército à república se deveu grande parte pela influência do pensamento positivista de Augusto Comte no meio militar, notadamente propagado por Benjamin Constant, tido como um dos responsáveis pela república.
É importante que fique claro que a república positivista não está preocupada com a democracia representativa, de quem é inimiga, aliás. O que se pretende é a instauração da ditadura republicana, de acordo com a engenharia social pensada por Comte e inspirada pelo cientificismo que vigorava no século XIX. A frase da nossa bandeira, que substituiu a do Império, vem do lema comteano: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por meta. Após a proclamação da república, esse pensamento passou a exercer ainda mais influência na história brasileira, ainda por meio do exército.
É ele que vai inspirar, em boa medida, o movimento tenentista anos mais tarde, que apesar de não ter sucesso imediato, pavimentou o caminho para a revolução de 30, o golpe que levou ao poder Getúlio Vargas, outro militar e também positivista. Vargas vai instaurar a ditadura do estado novo, que dura de 37 a 45 e que somente terminou para que agora ele não sofresse um golpe militar. Quem assume em 46 é Gaspar Dutra, não por acaso, mais um militar. Vargas retorna em 51 e governa em meio a crises até o seu suicídio.
A morte de Vargas intensificou a crise política que o país atravessa e, durante as eleições de 1955, havia quem defendesse um golpe, o que se intensificou com a vitória de Juscelino Kubitschek. A posse desde somente foi garantida pelo que ficou conhecido como “golpe preventivo” dado por Henrique Teixeira Lott ou General Lott – que concorreu à presidência nas eleições de 1960. Em 1964 o Brasil sofreu outro golpe militar, cuja ditadura durou 21 anos.
Como diz Sérgio Abranches, é difícil dissociar o militar que ocupa cargo civil da de sua instituição. E esse breve retrospecto da história brasileira, que poderia ser acrescentado de outros tantos episódios que reforçariam o argumento exposto, mostra que é ainda mais difícil afastar a responsabilidade da corporação militar pelos rumos que nos trouxeram até aqui, essa que parece tutelar a vida pública brasileira desde o golpe da república. Agora, a questão é escancarada até mesmo pelo número de militares ocupando cargos nos diversos escalões do governo.
Como afirma o Antropólogo Piero Leirner em entrevista para a BBC “não é questão de se os militares aprovam ou não o governo: eles são o governo”. O presidente, na visão de Leirner, seria o promotor dos conflitos que permitiria a ação dos militares enquanto garantidores da ordem. É nisso, aliás, em que boa parte da opinião pública conservadora acredita, ao clamar por um golpe militar.
No momento, entretanto, está claro que a instituição que ocupou o governo civil sequer consegue promover essa ordem que acredita ser de sua responsabilidade. Que fique claro, não é. Não há nada que demonstre que a disciplina militar e a sua organização hierárquica sejam benéficas para o exercício da política. O governo, deve ser do povo e de sua diversidade, não de uma corporação.
A fala de Gilmar Mendes incomoda tanto o meio militar porque é verdadeira e expõe suas falhas, como também o pouco caso com a vida do cidadão não fardado – como visto nos anos de chumbo - mas como alerta Gaspari, pode ser utilizada pelos militares autoritários para fomentar uma crise, com sérios prejuízos para a nossa democracia.
O exército não deve ser o tutor da sociedade brasileira, e seria bom que ele se recolhesse em suas funções institucionais, longe da política. Somente assim poderemos, enfim, ver acabado o nosso projeto de república, verdadeiramente democrática.
Arthur Spada
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