O monge e a quarentena
A tarefa de um monge budista está no trabalho com o coração das pessoas.
Um médico do corpo físico trabalha com o corpo e um psicólogo com a psiquê. Como budista, nós acreditamos que há uma parte profunda da mente, que eu costumo chamar de “coração” ou “espírito”. Procuro usar uma expressão que a pessoa do contexto vai compreender. Alguns mestres budistas chamavam de ālāyavijñāna e outros de amalavijñāna. Essa parte profunda da nossa mente, o coração, é a parte que em exercícios meditativos procuramos estar profundamente atentos e absorvidos. Como fazemos isso?!
Em poucas palavras o exercício envolve principalmente “olhar para dentro” e isso significa, se a pessoa faz de um jeito certo, “olhar para o coração” e lá “observar a paisagem” com muita atenção. Mas o que isso tem a ver com a pandemia? Com a quarentena?
As pessoas, sendo obrigadas a ficar em casa, acabaram também sendo obrigadas a olhar mais para dentro de si mesmas. Quero dizer que uma situação com menos oportunidades de distração gerou uma outra situação que obrigou as pessoas a ficarem mais “sozinhas com seus pensamentos”. Isso criou uma outra coisa que pode ser vista como uma oportunidade: as pessoas podem utilizar uma situação negativa como a pandemia ou a quarentena para olhar para dentro de si mesmas, observar a paisagem, e tirar algo de positivo disso ou, podem tentar evitar esse exercício e criar outros meios de distração.
Como monge, percebi que as pessoas não passaram a se angustiar e sofrer mais apenas por causa dos problemas relacionados diretamente ao Convid-19. Elas também passaram a sentir essa profunda angústia, essa profunda aflição, também pelo fato de que foram obrigadas a ficar “sozinhas consigo mesmas”. Esse problema apareceu de várias formas. Pessoas me procuraram e mostraram isso: “estou sofrendo mais, minha mente está com um turbilhão de pensamentos, ideias, sentimentos e emoções, não sei o que fazer...!”.
O que procuramos mostrar para elas é: não apenas surgiu um aumento de tais pensamentos ou ideias, mas, sim, que é possível que agora elas estejam prestando – mesmo que não propositalmente – mais atenção em si mesmas. Assim, elas observam a própria mente e o espaço da mente, o coração! Eu digo para elas: “procure prestar atenção tanto nos pensamentos quanto no espaço que há entre os pensamentos, procure esse espaço e, não reaja negativamente ou positivamente aos pensamentos, afinal são... apenas pensamentos, não os alimente, apenas observe e testemunhe”.
Não é fácil fazer isso, pois as pessoas não estão acostumadas a tirar momentos diários para estar sozinhas apenas com a mente e com o coração.
Estão sempre na correria do seu cotidiano. Então, na nossa escola Jodo-shu nós temos um método, um método meditativo por assim dizer. Na Jodo-shu também praticamos meditação com um método bem específico. Esse método é a recitação continua do nome do Buda Amida. Nós recitamos o nome do Buda não apenas para mostrar nossa devoção, mas também para trabalharmos com a nossa mente e com o nosso coração. Quando estamos recitando, atentos e absorvidos na recitação nós observamos a recitação, a mente e... o coração. É como se fosse uma espécie de... “apoio que nos equilibra” para pararmos de ficar tão ligados aos pensamentos e aos conceitos.
Desse modo, até uma situação extremamente negativa e triste como a pandemia e a quarentena oferece uma oportunidade. Uma oportunidade de conhecer a nós mesmos, de olhar para dentro e observar a paisagem.
A recitação do nome do Buda pode auxiliar nisso, pois como pessoas ordinárias precisamos de algum tipo de “suporte sólido” para nos manter atentos à mente, e recitar o nome do Buda pode desempenhar esse papel. O leitor talvez não saiba, mas o nome do Buda Amida significa “luz sem limites” também. Essa “luz sem limites” é uma forma de dizer que a mente está sempre presente. A mente testemunha e revela as coisas, nós ficamos muito apegados as coisas que a mente ilumina, as ideias ou os pensamentos, mas esquecemos do que está iluminando essas coisas.
Recitar o nome do Buda da Luz sem limites é um modo de lembrar frequentemente da presença daquilo que revela e ilumina as ideias ou os pensamentos. Não posso oferecer o que um médico oferece ou um psicólogo, e quando as pessoas precisam desse tipo de ajuda eu sempre aconselho que elas busquem a ajuda mais adequada. Mas tem algo mais, além disso, tem o coração, o espaço da mente. Esse espaço é ignorado a maior parte do tempo pela maioria das pessoas e, como budista, eu acredito que se as pessoas reconhecessem adequadamente esse espaço elas teriam um lugar na qual seria possível estabelecer uma pacificação e uma solidez mental incrível que poderia servir de suporte para as decisões diárias do fluxo e da impermanência da vida. Essa pacificação e solidez mental incrível é Amida.
A quarentena nos oferece também oportunidades com as quais podemos aprender muita coisa e uma dessas coisas é um conhecimento mais atento de nós mesmos, do espaço da mente, do nosso coração, de Amida.
Monge Milton Yamada
Templo Budista Nippakuji