Afrogamia - parte 3: autointimidade 

Arte: Ritchelly Oliveira

Arte: Ritchelly Oliveira

Afrogamia é um sistema afetivo que preconiza a autointimidade. Uma das dúvidas que aparece é:

Autointimdade e autoconhecimento são diferentes?

Sim. Autointimididade, assim como afrogamia, é um conceito afroperspectivista, ambos não são fenômenos que foram concebidos agora. Os termos surgem para nomear ideias e práticas que existem em várias comunidades dentro e fora da África. Proclamar a autointimidade é uma maneira de defender que temos um recurso rico para estabelecer o amor em parâmetros que escapem aos clichês românticos e às diversas formas de desilusão amorosa.

Autointimidade serve para superar idealizações, pessimismos e a coisificação dos relacionamentos como Love-foods descartáveis.

O primeiro passo é entender que autointimidade ultrapassa a categoria de autoconhecimento.

O autoconhecimento é uma questão filosófica antiga, Orunmilá, o filósofo iorubá do século V a.C., fez uma bela sistematização do autoconhecimento como objeto do exercício filosófico. Alguns séculos antes, no Kemet, Egito antigo, Os Ensinamentos de Amenemope apresentam um sistema filosófico que diz algo semelhante a uma das teses do Livro do vir à luz do dia (equivocadamente traduzido como Livro dos mortos) escrito por Hunefer:

“o coração é órgão do pensamento, das emoções e do caráter”. 

Em termos contemporâneos, podemos dizer: pensar é um ato afetivo. Raciocinar é, assim como sentir, um exercício cardíaco. Nós não precisamos escolher entre sentir e pensar, a razão e a emoção não tem que estar em lados opostos. O resultado de uma escolha não pode significar optar entre razão e emoção, é preciso compreender que uma escolha autêntica envolve a racionalidade e os sentimentos.

Por exemplo, a adolescência tem sido um palco de conflitos emocionais, porque a pessoa é colocada diante dos “dilemas de Alice”: sou grande ou sou pequena? Nas aventuras da personagem Alice nos livros de Lewis Carroll, a menina entra, pela toca do coelho, numa casa estranha, ela fica gigante e chora e depois diminui de tamanho e quase se afoga em lágrimas. Ora, Alice no País das Maravilhas está passando pela adolescência, pequena para algumas coisas e suficientemente grande para outras. O conflito emocional pode ser a caricatura de uma criança num corpo adulto. Alice se pergunta: “Quem sou eu?”.

A pergunta feita por Hunefer, repetida pelo filósofo grego Sócrates, retomada pela psicologia e pela literatura pode ser encarada frequentemente, apenas como um projeto de autoconhecimento. Mas, a maneira como o pensamento de Orunmilá nos convida a fazer a mesma pergunta, tanto quanto o jeito de Hunefer não devem ser entendidos do mesmo modo que a cultura ocidental tem formulado essa interrogação. Talvez, por isso, seja menos frequente indagar a respeito da autointimidade. O conhecimento de si pode ser restrito a um ato cognitivo, um exercício intelectual.

A autointimidade exige mais do que raciocínio intelectual, o coração entra em cena, mas, não apenas como terra das emoções.  

Na antiga tradição cultural e filosófica do Kemet, a relação entre sentimentos e pensamento não é de oposição. Quando pensar e sentir são rivais é um sinal de adoecimento.  Definir o coração como a sede do pensamento propõe um tipo de síntese conectiva, o ser humano é uma unidade orgânica na qual elementos diversos e diferentes compõem alguma coisa que só entendemos juntando tudo. Nós não podemos separar o que pensamos do que sentimos. Nós somos tudo junto e misturado (essa expressão popular, “juntos e misturados” precisa ser mais explorada).

Um dos maiores equívocos da modernidade ocidental foi supor que a mente fosse alguma coisa separável do corpo.  Em resumo, a partir de Amenemope o coração pensa e sente. Sem dúvida, nós somos o que pensamos, o que sentimos e o que fazemos e, ainda, o que não sabemos a respeito de nós e só pode ser dito pelos encontros com outras pessoas.

A autointimidade pressupõe o reconhecimento de que somos interdependentes. Nós não somos autossuficientes. 

O pensamento de Orunmilá sustenta um conceito que vai além da noção corriqueira de autoconhecimento. Porque a filosofia e a geopsicologia de Orunmilá nos levam às ideias de biomas afetivos (assunto que voltaremos num próximo capítulo). Cada pessoa é um organismo que, conforme o tipo de nutrição e exercícios afetivos, pode ser mais ou menos propensa a pensar junto com o que sente e o que faz. Essa perspectiva se aproxima das formulações filosóficas de Sobonfu Somé no célebre livro O Espírito da Intimidade.

Vale a pena reafirmar que o conceito de autointimidade tem como referências os estudos filosóficos keméticos de Hunefer e Amenemope, a geopsicologia de Orunmilá e a filosofia dagara exposta por Somé. A partir dessas leituras, proclamamos a autointimidade como:

a habilidade afetiva por estar em conexão com os próprios afetos, reconhecendo limites e o caráter inseparável do que pensamos, do que sentimos e do que fazemos.

Daí, a autointimidade ser um convite para que razão e emoção não estejam desconectadas. Sobonfu Somé argumenta que o amor é um exercício de intimidade. Pois bem, baseado nesses estudos, nossa hipótese é de que: o bem-estar da vida amorosa não pode prescindir da autoinitmidade. Uma pessoa autoíntima pode aproveitar o amor com mais liberdade.

Renato Noguera

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Leia também:

Afrogamia parte 1

Afrogamia parte 2

Referências bibliográficas

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