“Bom dia, Verônica” e chega de viralatismo

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Tainá Muller - 38 anos; vasta trajetória no cinema; rosto conhecido na TV por personagens coadjuvantes nas novelas.  

Eduardo Moscovis - 52 anos; inúmeras novelas no currículo entre mocinhos e vilões; já foi considerado um dos principais galãs do gênero. 

Camila Morgado - 45 anos; tem uma longa carreira na TV e no cinema; entre heroínas e mocinhas se tornou uma das principais atrizes da sua geração.  

Comecei esse texto com um breve antecedente artístico dos 3 (três) principais nomes do elenco de “Bom dia, Verônica”, nova série original brasileira recém lançada pela Netflix. O drama policial é uma adaptação do romance homônimo escrito a quatro mãos por Ilana Casoy e Raphael Montes, sob o pseudônimo de Andrea Kilmore, e contempla o trio de protagonistas com personagens densos e completamente diferentes dos trabalhos anteriores que marcaram suas carreiras e os fizeram conhecidos do grande público.

A possibilidade de sair de uma zona de conforto e mostrar a versatilidade e o repertório cênico que às vezes se aprisionam na repetição de um perfil fixo de personagem que a televisão carimba em alguns atores e atrizes, é uma das benfeitorias provocadas pelo processo de chegada e contínua consolidação do streaming na indústria audiovisual brasileira. A abertura de mercado, os diferentes canais de exibição e consequentemente o maior número de obras produzidas aumenta de forma sintomática as chances de novas abordagens temáticas, a experimentação de novos formatos e uma maior ousadia na escalação de elenco.    

Bom dia, Verônica Elenco.jpg

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O trabalho feito por Tainá, Du e Camila ancoram o êxito na realização da série. A construção individual e coletiva se esteia no minimalismo de cada detalhe e se fortalece no domínio do corpo, da expressão e do silêncio de cada cena. O não-verbal exterioriza com verdade e intensidade as emoções que atravessam cada história ali entrelaçada. 

Tainá equaliza com destreza as frequências da escrivã cujo talento vai muito além da função burocrática desempenhada na delegacia. Seu ímpeto de justiça e sua empatia junto as vítimas se alternam com conflitos de ordem psicológica e familiar que da mesma forma que a vulnerabilizam, a tornam mais humana e íntima do público.  

Moscovis consegue nos provocar repulsa, nojo, abjeção e os piores sentimentos possíveis só com sua presença na tela. Blindado pela farda policial e pela impunidade que ela proporciona, Cláudio não precisa falar uma palavra para transpor toda a carga pesada e obscura da sua psicopatia. Sua composição cênica se alicerça no olhar e no movimento com tamanha potência que com seu respirar conseguimos sentir o medo e o horror.    

Camila nos contempla com uma atuação irretocável. O gestual contido, a fala temerosa, o olhar amedrontado, refletem o estado extremo de violência física e psicológica que sua personagem sofre diariamente e enraiza a relação de dependência emocional com o agressor. Janete toca de forma arrebatadora nos fazendo sentir o horror, o pânico e, sobretudo, nos colocando no lugar da vítima.      

Um bom thriller de suspense se faz quando a santíssima trindade de qualquer produto audiovisual ROTEIRO-DIREÇÃO-ELENCO consegue impregnar a atmosfera de tensão de tal forma que até nos momentos mais neutros, onde o terror inexiste do ponto de vista da ação, sentimos e reagimos às emoções que ela aflora. É o que acontece nos 8 (oito) episódios da série. O roteiro é bem amarrado fazendo com que as tramas colidam com fluidez e coerência; A direção do José Henrique Fonseca está em sintonia com carga dramática da história e consegue extrair o melhor de cada atuação, de cada clímax; O elenco em sua totalidade é muito bem escalado e mescla atores experientes em perfis pouco convencionais (como: Antonio Grassi, Silvio Guindane e Adriano Garib) e novos talentos (como Elisa Volpato, Johnnas Oliva e Marina Provenzzano).        

“Bom dia, Verônica” fortalece o diálogo entre diferentes linguagens e abre ainda mais a janela de possibilidades entre a literatura e o cinema. A produção literária, da clássica à mais contemporânea, tem obras com enredos instigantes, visualmente riquíssimos e os elementos necessários para se fazer uma adaptação tão boa quanto a história contada nos livros (“Fim” da Fernanda Torres, “Gigantes” do Pedro Henrique Neschling e “Torto Arado” do Itamar Vieira Jr, por exemplo). E essa órbita criativa beneficia a cultura de modo ainda mais abrangente fazendo com que o público se interesse em ler a obra adaptada na tela.      

Fomos historicamente adestrados a consumir, valorizar e não questionar o modo de fazer americano. O que eles fazem, seja realmente de qualidade ou escancaradamente ruim, é sempre referência para o que produzimos aqui. A inspiração se perde na emulação pasteurizada de fórmulas, representações e realidades que se diferem por questões culturais, sociais e econômicas. A criação e popularização desse discurso se deu em grande parte por um olhar preconceituoso e de desqualificação em torno das telenovelas. A classificação do produto de maior sucesso da nossa produção audiovisual como sub-gênero alimentou esse elitismo cultural e encarcerou as ousadias peculiares da nossa arte.     

O discurso vira-lata de que o Brasil não produz séries de qualidade é ultrajante, ultrapassado e sobretudo, desrespeitoso com os profissionais que trabalham no audiovisual e que além de lidar diariamente com a desconfiança e o descrédito local precisam enfrentar a escassez de investimentos e subsídios de uma máquina pública sucateada e ignóbil na sua pequenez. A série mostra que podemos - e devemos - investir no gênero seriado e, principalmente, em narrativas mais pesadas, de forte viés psicológico e investigativo. O audiovisual brasileiro já mostrou saber fazer com qualidade e autoralidade tramas policiais que atravessam com propriedade e contundência as mazelas sociais que amarram nossa identidade criativa.  

Assim como não há o heróico puritanismo nem a vilania gratuita, não existe produção audiovisual perfeita, inquestionável. A caixa que simboliza a violência em “Bom dia, Verônica” é a metáfora ideal para o cárcere e as cegueiras cotidianas que sofremos (às vezes até nos permitimos sofrer) sejam elas dentro de casa, na rua, na tela ou dentro de nós mesmos.     

Felipe Ferreira

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