Buscando filosofia num momento de crise

Diante de uma crise, isto é, de um momento que exige o nosso julgamento e sem elementos suficientes para fazer qualquer juízo (necessidade de decisão em meio a um estado de coisas muito confuso), a filosofia tem algo a nos dizer. Por essa razão que se justifica a busca pela filosofia em tempos de crise.

Não porque a filosofia dê uma explicação reconfortante sobre a realidade ou respostas que acabem com todo sofrimento, não se trata de uma solução ou salvação religiosa, tampouco de uma vacina científica, nem de um gozo estético. Filosofia não é religião, não é ciência e não é arte.  Filosofia diante de uma crise nos convida tanto para reflexão como para inflexão. Se refletir é um convite à revisitar o que já foi visto. A inflexão convoca para uma mudança de olhar, encarar o que não observamos à primeira vista, se trata de uma mudança de direção e sentido. 

A partir do sistema filosófico ubuntu, o pensador sul-africano Mogobe Ramose argumenta insistentemente que conviver bem não significa evitar o conflito; mas, cuidado para perceber que como a interdependência é um princípio vital, as divergências não podem se transformar em confronto letal ou ações violentas. O pensamento filosófico ubuntu ressalta que três aspectos fundamentais devem ser pensados articuladamente:

  • o conhecimento do mundo;

  • a natureza da vida;

  • os princípios para agir diante dos desafios públicos e privados.

O filósofo faz um convite contra as ideias de superação do medo e da angústia tão comuns em momentos de crise; convida-nos a conviver com elementos que são constitutivos da condição humana. Num momento de crise, a angústia é alguma coisa com a qual devemos conviver e reconhecer que só através do encontro com outras pessoas podemos nos nutrir de repertórios para enfrentar os desafios. A filosofia ubuntu ressalta a interdependência, por isso diante de um grande problema, as soluções individuais são sempre as piores.

O pensador Ailton Krenak reclamava a algum tempo que a civilização ocidental estava cega para a natureza, não conhecia o planeta suficientemente. O filósofo yanomami Davi Kopenawa faz coro com Ailton Krenak e, guardando devidas proporções, com o pensador sul-africano Ramose. A cosmopolítica yanomami exposta por Kopenawa em Queda do céu, livro publicado em 2016, expôs a responsabilidade humana, especificamente de alguns modelos humanos, por uma crise em escala mundial que estaria por vir.

Depois de um acidente com uma mineradora, Ailton Krenak comentou que a solução para o Rio Doce estaria na paralisação de todas as atividades de extração minera; um engenheiro disse que o mundo não poderia parar, as bases do seu pensamento estavam ancoradas numa cosmovisão em que o trabalho se opõe ao descanso. O que a filosofia, considerando autorias africanas, quilombolas e dos povos originários da América, ensina diante de uma crise (especialmente de ordem sanitária como a pandemia causada pela Covid-19)?

Ora, lazer e trabalho não estão em oposição e que diante de uma crise sanitária global, será preciso além de vacinas de repensarmos o modo como produzimos, sonhamos, amamos, enfim, a maneira como vivemos. Talvez, seja por isso que as pessoas procurem filosofia em tempos de crise, para lançarem luzes, ou como diria o pensador japonês Junichiro Tanizaki no livro Em louvor da sombra, que não devemos lançar luz sobre tudo, algumas coisas pelo contrário são valorizadas e só fazem sentido sob sombras. 

Porque não se trata mais de superar, de buscar progresso ou de encontrar uma saída mágica; mas, talvez, de  silêncio, meditação e recolhimento para entender profundidade o que está acontecendo.

Com efeito, a conclusão parcial que podemos chegar é simples: as pessoas procuram a filosofia em tempos de crise para encontrar sombras que elucidem coisas que as luzes escondem. Porque como bem nos disse Nelson Mandela, os seres humanos não têm medo da escuridão; temem as luzes. “É a nossa luz, não as nossas trevas O que mais nos apavora” – escreveu Mandela.

Num momento de crise, a filosofia nos convida para uma dupla aproximação, tanto das luzes quanto das sombras.

Renato Noguera

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