Carta sem título II

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Trecho do documentário “Pina” de Wim Wenders, 2011.

Eu ainda estou aqui. Lembra que eu não sabia se teria carnaval?

Pois é, eu soube que teve e que foi igual a todos os outros. Talvez eu não devesse ter tido tanto medo antes. Mas é que você não sabe como é ficar todo esse tempo nessa tensão, passando rápido pela janela pra que ninguém me veja, ou as vezes sem nem mesmo abrir a cortina pra não ter correr esse risco, ou pra não ter essa preocupação apenas num dia. Aprendi a conviver com o calor, o silêncio e a angústia, assim mesmo, no escuro. As vezes parece que dói menos, mas no fundo o buraco só aumenta. 

Mas depois do carnaval eu soube que a coisa ficou feia. Acho que foi logo depois. Eu posso dizer porque o silêncio aí de fora ficou maior. Eu sempre ouvia umas crianças correndo e chutando umas latas, que eu acreditava ser um jogo de rua desconhecido pra mim. De repente tudo parou. Antes eu lembro que tinha medo que algo pudesse dar muito errado, e no fundo eu não sabia como poderia ser. Agora não dá nem mais pra dizer o que é dar errado, nem pra quem. 

Depois que te escrevi a primeira vez fiquei pensando qual seria a sua reação ao ler aquela carta. E agora, de novo. Mas dessa vez consigo confessar que é mera imaginação, porque eu sei que aquela carta ainda jaz na gaveta, já que não tenho como te entregar. Mas me faz confortável imaginar que você leu e que acreditou em tudo. Que alguma lágrima risonha escorreu do canto do teu olho. E que você abraçou o papel por um tempo como se fosse a mim. E o vinco que fez no papel seria o mesmo que faria na minha blusa. 

Eu também me pergunto se a sua consciência histórica ainda faria sentido, se você iria manter a sua cabeça no lugar, sem deixar se derrubar e tentando tirar algo de bom dessa história toda. Queria saber se tudo o que você leu ia ser suficiente pra te fazer atravessar essa fase. Se todas aquelas reflexões sobre o devir histórico iam fazer alguma diferença enquanto enfrenta essa nova rotina. A única certeza que eu quero ter é que seus olhos brilhantes e sinceros continuariam aí. Talvez estejam agora mais piedosos, ou talvez mais duros. Espero que não. 

Fora isso eu já não tenho mais nenhuma certeza, e considero que me atirar nesse abismo é o que me dá mais segurança. Porque não dá mais pra aguentar tudo como ainda é, ou como parece ser. Talvez eu tenha me dado conta de que a gente precisa deixar de sentir o peso do chão pra descobrir que a gente se sustenta no ar. Na corda bamba, de sombrinha. 

Quando nós ficamos muito tempo aqui dentro, tudo aquilo que era o motivo da nossa luta e dos nossos embates vai ganhando outra cara, pelo menos pra mim, e é com o turbilhão de coisas aqui de dentro que nós temos que nos preocupar primeiro. E tentar dar um jeito de conviver com essa coisa toda, que é tão grande, mas tão sem forma e consistência. Chega uma hora que isso tem que ser enfrentado, e vai parecendo que só isso que pode nos tirar desse lugar e transformar esse mundo. Ou que nós só podemos nos ocupar do nosso próprio universo. O universo se vira pelo avesso para devorar-me. Ginsberg tinha razão. 

A gente andava sempre muito depressa. Sempre dispostos a cumprir com todos os deveres do Estado e da vida social, achando que isso era motivo de orgulho, de honra e de sucesso. Mas pra onde isso nos levou?

A vida é tão cheia de contradições e muitos não notam que aquilo que nos ensinaram a fazer e conquistar é na verdade o que nos destrói. Mas o que é o viver senão um caminho incessante até o apagamento último? Talvez todas as pequenas destruições que vamos atravessando vão apenas nos preparando pra isso, nos deixando mais fortes ou mais frágeis, nos moldando pra algo que não sabemos como é. Tá aí outra contradição, preparar-se pra não ser. Desculpa, eu ainda não aprendi a fazer sentido nesse tempo todo. 

As vezes eu sinto que a gente precisa estar sempre escapando, como água por entre os dedos, ou como a bolha de sabão que estoura na mão da criança e desaparece antes de ser pega. Sempre desviando de alguma coisa ou nos escondendo pra não sermos arrebentados. E agora a nós tentamos fugir disso tudo, eu aqui dentro, você no seu dentro. Já tivemos que escapar de tanta coisa que não aprendemos a não fugir de nós mesmos, porque lutar pra sobreviver é ao mesmo tempo escapar da nossa tragédia. 

Eu não queria que ninguém ficasse pelo caminho, mas agora não tem mais jeito. E dá uma angústia perceber que isso não importa pra mais ninguém, talvez apenas por quem foi deixado pra trás. Mas pra todo o resto é só continuar, fingindo que nada está acontecendo de diferente. Tomando sol na praia, fazendo festinha de aniversário. Já era assim antes, na verdade, mas agora está cada vez mais claro que não há nada que nos leve para um rumo diferente. Talvez você e seu conhecimento sobre a história pudesse ser uma luz nesse momento. Dá um desespero ver que tudo continua bem demais pra muita gente. Eu só queria ver o sol fora dessa janela. Tanto. Queria poder dançar lá fora. 

Eu nunca mais ouvi uma música ou assisti um filme porque tenho medo que algum vizinho escute o barulho e me perceba aqui dentro. Tem momentos que cantarolo algo baixinho, de olhos fechados e no chão gelado da cozinha pra que o tempo passe mais rápido. Ou pare num momento fora daqui, em que eu me conecto sabe-se lá com o que. Nessas horas acho graça quando a música do Belchior vem na cabeça: “ano passado eu morri...”. Eu acho que agora estamos vivendo nesse ano passado dele. Talvez no próximo a gente não morra mais. 

Eu vou te deixar um trecho de um livro que eu achei por aqui. Pode ser que faça mais sentido e lhe dê mais esperança do que eu possa ser capaz: 

“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”

Continue firme daí, que eu me viro daqui. 

Brasil, setembro de ....

Arthur Spada

Instagram @arthurspada

Aqui a primeira carta se você não leu…