Carta sem título

*Imagem: Homem vestindo Paragolé de Hélio Oiticica, fotografado por Eduardo Viveiros de Castro.

*Imagem: Homem vestindo Paragolé de Hélio Oiticica, fotografado por Eduardo Viveiros de Castro.

Imagino que ao receber essa carta sua primeira expressão seja de surpresa. Nunca te escrevi antes numa folha de papel (penso que sequer conheça minha letra) e possa lhe dar a impressão de que tenho algo grave a falar. Não é nada disso, mas sinto que lhe devo explicações. Ao mesmo tempo, percebo (já que essa não ser a primeira versão dessa carta, que talvez não venha a luz também) que eu preciso falar com alguém. 

Escrevo porque não saberia falar olhando nos seus olhos, sempre condescendentes e naturalmente felizes, o que somente assumo agora, com um aperto de saudade, pois não sei se os verei novamente. Certamente não em breve. E como dói não ter esse olhar aqui. Escrevo, porque as coisas estão difíceis. E somente por isso me atrevo a lançar mão desse instrumento que é naturalmente seu, com minhas ideias desajeitadas e as vezes sem sentido. Espero que não desista no meio do caminho. 

As coisas não andam bem, e é como se não tivéssemos saída. As vezes tenho a impressão que o ódio tomou conta das ruas e que a qualquer momento, numa fila de mercado ou esperando para atravessar a rua, ele vai mostrar todos os seus dentes, e fazer vítima quem estiver pelo caminho. Sei que falo isso de um lugar de privilégio, pois muitos já se confrontavam com esse monstro e pra eles é mais um companheiro diário. Muita gente ficou pelo caminho nesse ano que passou, quando só queriam dançar e esquecer desse ódio. 

Talvez eu sinta que não há saída, porque é como se não tivesse um caminho no horizonte. Para onde ir quando nada mais parece funcionar ou fazer sentido? Quando eu lia as notícias do mundo no jornal, é isso que sinto que está acontecendo. Parece que nos foi tirada essa trilha por onde poderíamos passar, e junto com ela foi levada a nossa segurança e a direção certa a tomar. Quando leio essas notícias, tenho medo de que já estamos num daqueles filmes do futuro, que se passam logo após algo dar muito errado.

Eu sei que se eu dissesse isso olhando nos seus olhos, provavelmente você responderia que nada nunca foi fácil mesmo, e que já vivemos momentos piores. Essa sua consciência histórica é um pouco irritante, e as vezes até parece que você quer esconder sua humanidade, como se nada lhe doesse. Em mim dói, e muito. E é por isso que eu escrevo também, para não te amolar com meu sofrimento, já que suas respostas seriam sempre as mesmas, mesmo que seus olhos pareçam sempre sinceros. Deles eu sinto falta. 

Tenho medo de que nunca nos recuperemos, e que isso marque o que resta de nós e de nossas vidas para sempre. Que isso poderia nos prender em mundos diferentes para sempre. Será que todos sofrem assim? E aí seremos uma sociedade marcada por isso, aquela coisa de uma consciência coletiva? Desculpa, já estou deixando de fazer sentido de novo. Você me diria pra viver o presente, antes de me preocupar com o futuro. 

Mas esse presente é doloroso, acho que por isso eu queria escapar dele. Ouço o barulho da chuva, mas não posso ver lá fora. Já faz dias que estou aqui, imaginando como deve ser a paisagem. E nesse tempo todo a gente vai lembrando de umas coisas bestas, como quando você beliscava meu braço, só pra me ver reclamar. Será que valeu a pena deixar tudo pra trás? Se eu não pensar no futuro, que ele vai valer a pena, e que a gente vai finalmente vencer, não tem como aguentar esse meu presente. Presente, as vezes essa palavra deixa de fazer sentido. 

Vai ver a gente têm que enfrentar isso mesmo, talvez tudo esteja certo, como dois e dois são cinco e a gente vai sair mais forte. Ou vai simplesmente sair, meio alquebrados (essa é sua) mas com forças pra sorrir novamente, ou pra chorar de alegria. Eu só não queria que ninguém ficasse pra trás. A gente parecia tão mais forte que esses capitães e generais todos. Mas esquecemos que eles eram mais espertos, e que eles queriam algo que a gente não sabia muito bem como fazer, e que eles estavam de olho na gente o tempo todo. 

Eu não quero mais essa angústia, esse medo e essa aflição o tempo todo, que qualquer estalo do chão assusta. Eu não quero mais esse fardo de lágrima que a gente segura com a garganta. Eu não quero desistir, também porque eu não posso mais, mesmo que eu não saiba mais se ainda tem jeito. Na verdade, agora eu só queria que o carnaval chegasse logo, pra poder cantar e dançar no meio da rua. Se é que vai ter carnaval esse ano. 

Mas é nessas horas que eu não sei porquê, mas percebo que eu agradeço a vida. Principalmente por ela ter me dado a quem escrever, e assim poder sonhar e imaginar como seria te ver e andar pelo centro como você gostava tanto, mais uma vez. Olhando assim, tudo valeu a pena, o que eu vi e aprendi nesses anos todos. Não há como perder, porque não tem nada pra ser perdido. Nada podem tirar de mim. E quanto a eles, nunca tiveram coisa alguma. 

Eu não devia mais ter idade pra essa esperança juvenil. Pra essa coisa de vai-ficar-tudo-bem-e-juntos-somos-mais-fortes, mas percebo que essa confiança nunca me largou, e por isso me obrigo a justificar que ela não é fruto de uma ingenuidade imatura, mas tem cara de ter nascido quando percebi que o fundo do poço é só mais concreto e pedra. Então vai ficar tudo bem, tudo continua bem. 

Acho que era isso que eu queria te falar. Não tem nada demais. Só fique firme daí, que eu fico firme daqui. 

Brasil, janeiro de 1972 ou de dois mil e vinte e tanto...

Arthur Spada

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