Chile e Bolívia em 2019: por que ainda devemos falar Esquerda e Direita?

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Há quem diga que Esquerda e Direita não existem. Há quem diga que partidos de centro-esquerda são comunistas. Há quem diga que liberais de centro-direita são neoliberais de extrema-direita. Tudo leva a crer que a falta de precisão conceitual dificulta muito um debate qualificado.  

Convido quem lê para uma análise política de dois eventos ocorridos no final de 2019 com dois países latino-americanos. Chile e a Bolívia. 

De modo bem geral, em outubro de 2019 várias manifestações trouxeram à cena uma revolta popular que mexeu com  todo o país. A população chilena se indignou com a agenda de um Governo de Direita que não demonstrava preocupação com distribuição de renda e políticas sociais. Na Bolívia, um Governo de Esquerda boliviano empreendeu uma estratégia de disputa hegemônica alterando juridicamente os critérios para reeleição, o que contribuiu para que setores adversários articulassem um confronto que acabou desencadeando num golpe de Estado Militar.  

No dia 10 de Novembro de 2019, o então presidente boliviano Evo Morales renunciou ao seu mandato após pressão militar. Em Novembro de 2019, o então presidente chileno decidiu dar início a um projeto de reforma da Constituição. A pressão da direita num governo de esquerda produziu a queda do 1º, 2º e 3º escalões ligados ao Presidente deposto. A pressão de esquerda num governo de direita provocou iniciativas para uma nova Constituição que atendesse anseios populares.

É enganoso interpretar que falamos de anjos e demônios. Nós estamos falando de seguir ou infringir as regras do jogo. Porém, existe uma questão de fundo que não aparece completamente na superfície do debate. Na Democracia, o dissenso é a única certeza. Uma maneira razoável de lidar com as tensões inerentes a qualquer sociedade está numa hipótese, mitigar os conflitos através da alternância de poder entre grupos políticos de Esquerda e Direita. Sem essa gangorra na gestão do Estado, as forças que perdem e ficam mais tempo na parte debaixo do brinquedo podem enlouquecer e se transformar em grupos violentos que desrespeitam a institucionalidade. Vejam bem, é uma hipótese. Eu convido vocês para partirmos de um ponto de vista de que o consenso é impossível. 

COMO PAUTAR E GERIR A AGENDA POLÍTICA DE UMA SOCIEDADE É ALGO EM ETERNA DISPUTA? 

Nós precisaremos considerar que todos os setores da sociedade possam participar respeitando os valores democráticos e ritos institucionais pactuados, garantindo equilíbrio de forças. Daí, digo hipoteticamente: precisamos de grupos políticos de centro-esquerda e de centro-direita articulando as forças mais radicais dos dois lados para propor.

No Chile, Presidente Sebastían Piñera não deveria ter desprezado agendas sociais e garantias dos direitos da classe trabalhadora. Em 25 de Outubro de 2019, mais de um milhão de pessoas protestavam na Praça da Itália, na cidade de Santiago. Os protestos tinham começado alguns dias antes, o estopim foi o aumento do preço do metrô. Mas, o pano de fundo era mais elaborado: a maioria da população não conseguia pagar por educação, saúde e previdência. A agenda liberal somou-se a outros problemas. Primeiro, a Constituição chinela de 2019 era a mesma que a do Governo do presidente Augusto Pinochet. Ou seja, uma Constituição criada num contexto da ditadura militar.

O QUE TRAZ MUITOS INCONVENIENTES RELACIONADOS ÀS PAUTAS DOS DIREITOS HUMANOS E BEM-ESTAR SOCIAL.

Por exemplo, em 2019 não existia sistema de saúde pública. Apenas 20% da população podiam pagar por um plano de saúde, a maioria descontava uma taxa fixa do salário e pagava por consultas, com exceção das pessoas em estado de extrema pobreza. De qualquer modo, a desigualdade mo tratamento de saúde era visível. A educação no Chile era o setor responsável pelo endividamento das famílias, a ausência de sistema público de ensino, em nível básico e superior, obrigava toda população a pagar. 

Por exemplo, a Universidade do Chile em 2019 era uma instituição pública com anuidade média de R$ 21 mil; mas, cursos como Medicina e Odontologia, dentre outros mais caros, passavam de R$ 30 mil. De acordo com anuário de Estatísticas Vitais do Chile: a maior taxa de suicídios da América Latina acontece no país. Uma razão estaria nos problemas financeiros que se agravam à medida que as pessoas envelhecem, o sistema previdenciário de capitalização possui uma fórmula que não garante rendimentos fixos até o fim da vida. Os protestos iniciados em 18 de Outubro de 2019 não foram somente por conta do aumento da passagem do metrô em 4%. Depois de pessoas mortas e caos nas ruas. O presidente Piñera deu notícias de que estava disposto a reformar a constituição e debater uma agenda para o crescimento e a distribuição de renda. Uma agenda política que não se ocupa da pobreza e distribuição de renda parece não se sustentar em contextos democráticos.

Na Bolívia, Presidente Evo Morales assumiu alguns riscos – os quais não justificam um golpe de Estado. Porém, uma vontade de “eternizar-se” no Poder através de uma manobra jurídica fortaleceu setores descontentes. Uma cronologia ligeira ajuda a entender. Em Janeiro de 2006 Morales assumiu o Governo; mas, em 2009 por meio de uma mudança constitucional aprovou reeleição para dois mandatos consecutivos de cinco anos cada. O que está no cerne do problema. Ele disputou e venceu as eleições de 2010 e 2014. Em 2019, candidatou-se novamente: a crise já estava posta e foi agravada.

QUAL DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA SUPORTARIA SEM EFEITOS COLATERAIS UM PRESIDENTE POR MAIS DE UMA DÉCADA?

Ora, ficar na vitrine por muito tempo aumenta o desgaste. A oxigenação dos nomes é importante, porque concentrar a esperança política num só nome sempre tem efeitos imprevisíveis. Qualquer sinal de culto à personalidade sempre produz os efeitos perigosos descritos pela psicanálise: aquele que amamos é justamente quem podemos odiar. A oxigenação do poder ajuda a evitar níveis insuportáveis de stress político. No caso da Bolívia, Morales poderia ter feito um sucessor, era melhor. Mesmo perder: seria mais promissor.

Afinal, muitas vezes, perder hoje significa ganhar amanhã. Nenhum grupo que ganha o tempo todo mantém a simpatia geral; tornar-se “vencedor” repetidamente é um motivo suficiente para despertar inveja e ciúme da parte derrotada. Nos Estados Unidos da América, a disputa entre Democratas e Republicanos – que naquele contexto representa a Esquerda e a Direita, respectivamente – demonstra um fenômeno bem interessante, nenhum Partido conseguiu vencer quatro eleições seguidas. O número que Morales queria emplacar. A lógica é de alternância. Em geral, nos países da América Latina existem mais do que dois partidos hegemônicos e o jogo político apresenta mais variável, o que torna o enredo mais imprevisível. 

Nos dois casos, a alternância podia ter sido uma saída. Nós podemos até especular que é natural que após uma onda progressista surja uma mais conservadora. Isso não é apenas política; mas, é próprio da vida. Ninguém faz a mesma coisa o tempo todo sem algum grau de insatisfação. Freud explica que o objeto de desejo esvazia-se um pouco depois da conquista. “A grama do vizinho é mais verde”. Aquela maçã vermelha e cheirosa perde o sabor depois de ser comida. 

A DEMOCRACIA NÃO PODE PERDER ESSE JOGO, A SUA ANTAGONISTA É A DITADURA, O FASCISMO.

Por essa razão, mesmo sendo crítico do sistema político vigente, não reconheço nada mais salutar do que a alternância entre vermelhos e azuis. As forças políticas de Esquerda e de Direita precisam existir como forças de equilíbrio, mantendo o ritmo do jogo. A eliminação de um dos times significa o fim da partida. O declínio da democracia. Por isso, tenho defendido a alternância entre essas duas forças: com preferência para aquelas que flertem com os grupos de Centro. A centro-esquerda x centro-direita ainda é o regime com menos efeitos colaterais para uma sociedade democrática. Pode ser que isso mude; mas, por enquanto é bom não mexer nos times. Quando a gente mexe nessa estrutura sempre dá algum problema.

Renato Noguera

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