“CULTURA”: Nem só do mainstream vive a cultura (e isso é ótimo!)

Foto: Gilberto Garcia - “Cortina Vermelha”

Foto: Gilberto Garcia - “Cortina Vermelha”

Numa realidade distópica onde a cultura é diariamente asfixiada sem pudor, nunca foi tão importante falar sobre ela. Tirá-la do pedestal erudito das discussões seculares em torno do seu conceito etimológico e semântico é o primeiro passo para que ela resista diante a censura cafona. No obscurantismo camuflado sob o véu moralista de um tradicionalismo ortodoxo na teoria e contraditório na prática, a arte é polida em códigos de conduta moral e num juízo de valores leviano que preza pela pequenez do conformismo obtuso.

Cercear o que deve ou não ser lido, assistido, contemplado ou apreciado diz muito sobre a dimensão que a palavra “cultura” carrega no seu cerne vivo, transitório, sem que seja preciso amordaçá-la na fôrma da definição barata. Não cabe ao Estado julgar determinada obra como “imprópria” ou “ofensiva” alicerçado num viés religioso, da mesma forma que eu não posso classificar o que é cultura pela baliza subjetiva das minhas predileções. O argumento que precede o “filtro” não se sustenta e contrapõe todo o leque de discursos e representações.     

Dia desses refletindo acerca da cena cultural brasileira me vi tentando fazer um breve mapeamento dos produtos atualmente predominantes na nossa cultura, principalmente, no que tange o seu conteúdo. A lei da oferta e da procura conduz a sinfonia do mainstream. A primeira fila da música, do audiovisual, do teatro é composta por obras norteadas por uma linguagem simples, reiterante e de fácil identificação com o público. Esse formato pasteurizado é a fatia predominante de um mercado que preza pelo volume homogêneo em detrimento de uma qualidade diversa. O case de sucesso ganha as vitrines da grande mídia e reforça o ciclo do consumo sedimentado no que vira tendência e se transforma em lucro.                      

 A ARTE É DEMOCRÁTICA. HÁ ESPAÇO PRA TUDO, AINDA QUE TODOS NÃO OCUPEM OS MESMOS ESPAÇOS.

Sempre haverá escritores que juntam meia dúzia de obviedades, publicam na internet e bombam em likes, erretês. O inegável talento de gurus da escrita contemporânea que conseguem escrever aquilo que as pessoas querem ler e, como numa receita de bolo, “transformam” vidas. Da mesma forma que aquela escritora ou aquele escritor desconhecido por muitos, reconhecido por alguns e que não tem um castelo de livros na entrada das grandes livrarias, consegue escrever de forma subjetivamente universal e contrapor essa estrutura mercadológica.      

É saudável (e essencial) que tenha em cartaz, além do filme de arte e do espetáculo conceito, aquela comédia despretensiosa, o besteirol barato. O contraponto entre culto e popular é o pêndulo que equilibra a engrenagem fazendo com que o público tenha um leque diverso de opções e consiga se ver representado em algum daqueles lugares. Quanto maior a quantidade de gêneros e linguagens, maiores serão as possibilidades de identificação e os diálogos que a obra provocará.         

Especificamente no campo da interpretação a vitrine é composta por: famosos atores que aparecem nas manchetes mais pelas polêmicas que causam do que pelo real papel do seu ofício; perfis padronizados em surfistas galãs na muleta da falta de talento; e ainda, loiras-fatais-sexys vítimas de “preconceito” por venderem/aceitarem tais predicados. Esses signos de representações além de reduzirem a obra a uma fórmula fácil de audiência endossam os critérios do estereótipo e da estética irreal de um sistema excludente e ilusório.    

Arte do 1º episódio do “Para dar nome as coisas” por Amanda Fogaça

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No primeiro episódio do “Para dar nome as coisas” (@paradarnomeascoisas), seu podcast semanal no Spotify e no Deezer, a jornalista e escritora Natália Sousa fez uma reflexão acerca do sucesso. Sua narrativa marcante e despojada fala como ter sucesso é um status de significado subjetivo, abstrato. O fator que o determina pra uma pessoa pode não ser o mesmo para outra, na mesma proporção em que os elementos culturalmente escolhidos para legitimá-lo não podem ser fixados como ideal. A convenção do êxito construída historicamente por uma sociedade capitalista e consumista nos deixa reféns do status e da matéria. Se o trajeto não contempla esses pontos de chegada, em números e tons megalomaníacos, a glória não foi alcançada ou o seu reconhecimento não é o suficiente para ser aceita como tal.       

"Há, neste Brasil, infinitos artistas enriquecendo a cultura com novas linguagens, escritas e tecnologia. Há uma música preta, ocupando um espaço inédito que vai de Rincon a Josyara. Você já ouviu a Josyara tocar e cantar? E Liniker? Luedji? Percebes que tem muitas compositoras abrindo uma nova reflexão linguística a partir de seus escritos? É pena uma grande imensa parte da música brasileira estar à margem, como meu velho pai", escreveu a cantora”. 


Em resposta a declaração do Milton, estrategicamente enfatizada pela Folha, alguns artistas, entre eles a cantora Anelis Assumpção (filha do cantor e compositor Itamar Assumpção) jogaram luzes aos nomes contemporâneos da música preta e periférica que ocupam espaços antes inacessíveis com a contundência artística de um discurso politizado e representativo. O novo de agora cria diferentes conexões e busca reverberar dentro dos velhos palcos. Não podemos cair na cilada de medir a cultura pela pela régua de uma corrente de consumo generalizada que se limita a um gênero, a um ritmo, a um ranking numérico.              

Tudo isso eclode numa série de questionamentos. Ter uma maior visibilidade de público e de mídia seria um caminho natural para uma popularização superficial e mercadológica? Até que ponto é artisticamente saudável para um artista deixar a cena alternativa e adentrar as cortinas do mainstream? 

Ainda que na arte a pureza integral de gênero seja uma utopia inverossímil, as concessões, quase sempre inevitáveis, para carimbar o passaporte de entrada no metiê da indústria cultural podem afrouxar os nós do artista com sua identidade. É comum alguns irem por caminhos opostos ao que percorreram antes de lotar teatros, peregrinar programas de TV, sitiar as paradas musicais. Não me cabe fazer juízo de valor e julgar a mudança de rota como certa ou errada. Todo artista é livre para escolher viver sua arte da forma que melhor lhe preencha o coração e a alma. 

A reflexão que deixo é que esse deslocamento para a linha de frente do show, se não for consciente e bem conduzido, de alguma forma pode enfraquecer o discurso mais dissonante, desconstruído e rebuscado de uma arte que se diferencia por provocar mais questionamentos do que certezas. 

A escolha é deles e nossa!  

Felipe Ferreira

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  Nota:

Comecei a escrever essa reflexão antes da polêmica entrevista do mestre Milton Nascimento ser publicada na Folha de S. Paulo no domingo do dia 22 de setembro. As vésperas da nova estação sua declaração sobre a cena musical brasileira contemporânea aflorou opiniões antagônicas, e mais do que isso, mostrou a necessidade de discutirmos os meios de produção da música (e da arte em sua amplitude) e das ferramentas de consumo aplicadas no mercado. As principais questões dessa análise serão comentadas ao longo deste texto, mais provocando do que respondendo, fazendo a gente viver a cultura mais na prática do que na definição teórica.