"Como ele se atreve?" Meio ambiente e o discurso na ONU
O Brasil é quem faz o discurso de abertura da assembleia geral da ONU, numa tradição que remonta a sua segunda edição (a desse ano foi a 74ª), sendo essa uma grande oportunidade para o país buscar influir no cenário global e expor seus objetivos em política externa e sua forma de inserção nesta. Nesse ano, após a abertura da Assembleia da ONU, o Brasil saiu menor, em função de um discurso recheado em informações falsas, agressivo e que não condiz nem com nossa tradição diplomática, tampouco com aquilo que se espera de uma fala nesse fórum.
Todos esperavam que a defesa da Amazônia fosse o grande tema a ser tratado, em razão dos últimos acontecimentos relacionados ao aumento de seu desmatamento, mas somente após cerca de dez minutos, de uma fala extremamente ideológica e sem razão de ser naquele espaço, é que o assunto foi tratado, e da pior maneira possível. Por mais que tente fazer um teatro – inclusive ao levar como convidada uma jovem indígena e sair para jantar com um colar que ganhou desta por sobre a camisa social - todos sabem qual é a posição do nosso presidente acerca da proteção ambiental.
Ainda que nossas eleições se insiram num contexto global de governos com viés conservador, baseado em valores tidos como tradicionais e defensores de um certo tipo de nacionalismo, (ou seja, a sorte não é só nossa, ainda que a vergonha de abrir a reunião da cúpula da ONU tenha sido) penso que não há mais como negar a emergência de tratar globalmente determinados temas. Especialmente no que tange a proteção ambiental.
O processo de globalização pode ser caracterizado como o aprofundamento da integração internacional, em diversos âmbitos da nossa vida – desde a economia até a cultura – que resulta numa profunda transformação das relações entre os países e de sociabilidade, cuja origem está associada e é dependente, sobretudo, da transformação do paradigma tecnológico ligado à comunicação e difusão de informações.
Manuel Castells, um dos sociólogos mais proeminentes da atualidade, e que já citei por aqui, pontua que este “é um processo multidimensional, mas está associado à emergência de um novo paradigma tecnológico, baseado nas tecnologias de comunicação e informação.” Castells se tornou conhecido por sua teoria da sociedade em redes – que foi tratado posteriormente por muitos como uma profecia das redes sociais que conhecemos hoje.
As transformações tecnológicas, como afirmado por Castells transformaram definitivamente o mundo; não apenas os seus processos comunicacionais, mas todas as relações sociais hoje são afetadas por ela. O mundo não só esta integralmente conectado, como boa parte da vida acontece em ambiente virtual. Relações sociais, de trabalho ou de poder estão sendo definitivamente afetadas por isso. Certos assuntos passam a ser cada vez mais globais, e outros são cada vez mais regionalizados. Para o bem e para o mal.
Por afetar diversas áreas da vida social, até mesmo a estrutura que parece a mais sólida de todas, o Estado, passa a ter novo significado e, com isso, outros atores passam a ter importante papel nesse cenário global, não sendo mais a governação mundial centrada no papel do Estado-Nação , mas a “governação é realizada numa rede, de instituições políticas que partilham a soberania em vários graus, que se reconfigura a si própria numa geometria geopolítica variável”, afirma Castells.
O discurso do nosso presidente na ONU nega esse fenômeno ao criticar a própria ONU e a posição de outros países contrários a sua política ambiental (e, é preciso afirmar, esse texto não é uma defesa irrestrita ao processo de globalização que tem seus defeitos, mas certamente é necessário aperfeiçoar nossa vida em comum, e não perseguir o nosso isolamento mundial como presente o presidente).
Não há como negar, portanto, que a proteção ambiental é um assunto global e cada vez mais o será, tendo em vista que se refere a garantia do futuro e da existência da própria humanidade. E somente a nossa racionalidade poderá conter o ímpeto do poder econômico, por vezes destrutivo, o que somente é possível numa esfera global já que, como visto, os processos de integração econômica também o são. Nosso presidente parece também esquecer dessa rede econômica global, até mesmo porque não tem pudores em atacar parceiros históricos do Brasil.
Ou seja, para além de todo o choque causado pelo discurso, fica evidente o quanto ele desconsidera os processos de transformação que o mundo tem passado nos últimos anos – seja em função do avanço tecnológico e da maior integração entre países, ou por causa da emergência de questões mundiais, como a proteção ambiental – de modo que muitos estão certos ao dizer que ele parece ter saído dos anos 80 (aliás, quando também havia a ameaça comunista, sobre a qual ele tanto se referiu).
Em Tudo que é solido desmancha no ar, Marshall Berman chama a atenção para como a modernidade é qualificada por sua transformação ininterrupta, na qual não há um momento de estabilidade, mas tudo é feito para depois ser modificado, e o homem se coloca em constante ressignificação, pois tudo é feito para ser refeito. É o impulso dialético da modernidade, e aqueles que fazem suas revoluções, não podem conter os seus efeitos.
O pensamento anti ambiental do nosso atual presidente é fruto desse ímpeto transformador da modernidade, no qual nada pode ficar igual e tudo deve ser transformado, e as florestas devem ser derrubadas em prol desse crescimento econômico. As rodovias para os carros, que destroem os bairros e as moradias – citadas por Berman – parecem ser preferidas pelo presidente para serem colocadas no lugar as florestas.
Ainda que esse ímpeto moderno de que trata Berman ainda esteja presente em diversos aspectos de nossa sociedade, sendo difícil mesmo crer que tenha de fato sido superado por uma “pós-modernidade”, não há como negar que o mundo já se deu conta de certas coisas, tais como o perigo de buscarmos o desenvolvimento a qualquer preço e negarmos qualquer tipo de mudança climática que coloque em risco a existência da vida humana. Ainda estamos em constante mudança, mas para o nosso bem, é melhor que a Amazônia não se desmanche no ar.
Somente a racionalidade pode nos salvar, junto do reconhecimento de que certas questões são mundiais e que não podem ser resolvidas apenas no âmbito particular de cada país. Infelizmente, elegemos alguém que nega tanto a racionalidade, quanto parece querer levar o país cada vez para mais longe do cenário mundial. Suas paranóias colocam em perigo tanto nossas florestas quanto nossa própria vida. Faço coro com a menina Greta Thunberg: como você se atreve?
Arthur Spada
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*As frases de Castells são do artigo “A Sociedade em Rede: do Conhecimento à Política”, que integra o livro “A Sociedade em Rede: do Conhecimento a Acção Política” editado pela Presidência da República de Portugal, em 2006.