Decreto de garantia da lei de da ordem: o que é e para que serve?

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A trajetória política do atual ocupante do Palácio do Planalto sempre esteve ligada ao tema da segurança pública, cuja identificação é quase automática, por se  tratar de um capitão do exército – reformado após planejar a explosão do quartel e ter se tornado vereador no Rio – que sempre teve nos militares seu maior grupo de apoio. Ao vencer o pleito de 2018, prometeu novas políticas para a segurança pública, sempre a partir do recrudescimento da legislação penal e de práticas que visam o encarceramento e a prevalência da atuação policial repressiva.

DISCUTIR A DESIGUALDADE COMO CATALISADOR DA VIOLÊNCIA, NÃO PASSA PELO SEU DISCURSO, POR EXEMPLO.

Com isso, conceitos e institutos jurídicos que apareciam de maneira esporádicas nos meios de comunicação passaram a fazer parte da agenda diária do debate público. A Garantia da lei de da Ordem (GLO) e o Excludente de Ilicitude estão entre eles,  tendo espaço diário nos jornais, ante as propostas do Executivo na área penal que envolvem esses instrumentos. 

 O problema acontece quando estes são tratados de maneira equivocada e sem a devida contextualização nos termos da lei. Vi alguém confundir esses dias o AI-5 (que também voltou a ser bastante falado, infelizmente) e a pretensão de expedir decretos de GLO do presidente, o que me motivou a escrever esse pequeno artigo, com a tentativa de iluminar esse mecanismo em específico, e colocar cada coisa em seu lugar. O excludente de ilicitude, a despeito da gravidade das pretensões presidenciais, fica para uma próxima. 

A GLO decorre do disposto no art. 142 da Constituição o qual diz o seguinte:  

Art. 142: As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Parênteses. Sim, esse é o artigo da Constituição através do qual muita gente acreditaria ser possível uma “intervenção militar constitucional” apesar disso claramente não estar no conteúdo normativo do texto, o que tampouco seria possível por se tratar de uma carta democrática, estando as forças armadas submetidas ao presidente da república. 

A Lei complementar n.º 97/99 é a que detalha as normas gerais das forças armadas e a sua organização, e especificamente o Decreto n.º 3897/01 regulamenta e fixa as diretrizes para o emprego destas para a garantia da lei e da ordem, dispondo de forma expressa em seu artigo 2º que é de competência exclusiva do Presidente da República a decisão de empregar o poder militar para tanto. 

O artigo 3º deste decreto, dispõe que a convocação das forças armadas nesses termos será admissível quando esgotados os outros mecanismos de segurança, ou seja, quando as polícias militares e civis demonstrarem não ter mais condições de assegurar a normalidade legal, tornando necessária a atuação dos militares. Em complemento, estabelece o artigo 5º do mesmo decreto que o emprego dessas forças deve ser episódico, com área previamente definida e com a menor duração possível.

Em suma, a aplicação das forças armadas para a garantia da lei e da ordem tem cabimento para combater situações extremas e não como saída rotineira para problemas quaisquer de segurança, e, mesmo que a situação seja grave, deve ter se mostrado insuficiente a atuação das polícias tradicionais. Entretanto, boa parte das vezes que um presidente se socorreu desse instrumento foi em razão de algum evento de grande proporção, como na RIO+20 ou na visita do Papa em 2013 (Aliás, o antigo comandante do Exército, General Eduardo Villas Boas, chegou a criticar o uso intensivo das operações de GLO). De 1992 a 2019 foram 138 operações de GLO, conforme dados do Ministério da Defesa. 

Por exemplo, em 2018, o então presidente Michel Temer assinou um decreto dessa natureza, que abrangia todo o território nacional, para desbloquear as estradas e rodovias em função da greve dos caminhoneiros. Antes disso, em 2017, havia expedido um decreto de GLO para tratar enviar tropas ao Rio de Janeiro, com foco no combate à criminalidade decorrente do tráfico de drogas, medida que foi duramente criticada. Isso porque, como visto, pode se afirmar que fugiu ao escopo do instrumento, já que as forças de segurança não estavam esgotadas e tampouco se trata de um problema episódico, cuja solução certamente ainda demanda atuação efetiva dos governos, Estadual e Federal, em diversas áreas para além da mera questão de segurança.

É preciso deixar claro que o uso das forças armadas para atuar na segurança pública deve ser extremo e pontual, vez que estas não são formadas para isso. O treinamento do exército é diferente daquele dado às polícias. Aquele visa a defesa do país em situação de guerra, através do combate e aniquilação do inimigo, enquanto as polícias deveriam agir dentro da sociedade, não contra inimigos, para a preservação da integridade dos cidadãos e do patrimônio público e privado – ainda que na prática, não seja isso que sempre aconteça, como tristemente assistimos  nesta semana, novamente, com o massacre de Paraisópolis.

Assim, apesar de ser um instrumento sensível, de uso extremo e que demanda cuidado, está previsto, como pudemos ver, em nossa legislação. A decretação de uma GLO não representa uma ruptura ao nosso sistema, mas apenas a utilização de um dos instrumentos dos quais o presidente dispõe para o cumprimento de suas funções, coisa bem diferente do que foi o AI-5. Este, fechou o Congresso Nacional, reprimiu direitos políticos e decretou a censura. GLO é um instrumento de segurança pública, AI-5 é ditadura e nada além disso. Uma GLO que exceda os termos da lei, está sujeita ao controle dos demais poderes, sobretudo do Judiciário, assim como o presidente também pode ser responsabilizado por seus atos que contrariem os termos legais. Coisa diversa de quando a ordem democrática é quebrada e o arbítrio é instaurado.

Essa diferenciação não significa qualquer tipo de defesa ao uso que a atual administração pretende dar ao instrumento. Ao afirmar que pretende a criação de uma “GLO do campo” para assegurar que as reintegrações de posse determinadas pelo Poder Judiciário sejam efetivadas, sob o argumento de atraso destas pelos governadores, o presidente parece desconhecer o instrumento (o que não é de se espantar, em se tratando de uma pessoa que nomeia terraplanistas para cargos importantes) e apenas reforça uma visão policialesca e arbitrária do mundo. 

Não há qualquer prova que corrobore essas afirmações, tampouco que as forças estaduais seriam incapazes de proceder à essas reintegrações, o que seria essencial para ser franqueado o emprego das forças armadas. Claramente, essa é mais uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais, que lutam pelo uso responsável da terra e reforma agrária, apenas para defender o interesse dos grandes latifundiários. A corda - ou a bala - sempre estoura para o lado mais fraco. 

Entendo que é necessário nos apropriarmos dos conceitos relativos aos instrumentos legais, para que possamos ficar atentos se estes estão sendo empregados para os fins que criados, ou se estão sendo subvertidos e utilizados de maneira diversa - sobretudo quando as motivações se mostrarem obscuras e em prejuízo daqueles mais necessitados. Somente assim é possível se mobilizar contra práticas abusivas e que possam ser formuladas pretensões aos poderes instituídos, condizentes com a ordem democrática. 

Arthur Spada

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