Democracia é saúde: A construção da oitava conferência nacional de saúde
Imagine um processo que começa em uma pequena comunidade. Com pessoas que se conhecem, convivem no dia a dia ou, pelo menos, são usuárias, trabalhadoras ou gestoras de serviços de saúde comuns a todos. Pessoas que, portanto, sabem muito bem o que funciona e o que não funciona na saúde local. Essas pessoas se reúnem, se organizam, discutem e formulam uma série de propostas e reivindicações de melhorias.
As propostas são, então, levadas, junto com propostas de outras comunidades, para uma discussão mais ampla, de caráter municipal. Vai se percebendo, ao longo do processo, que muitas propostas são semelhantes, pois muitos problemas também são semelhantes. As reivindicações mais importantes são, então, reunidas em um documento. Esse documento segue, junto com outros documentos de outros municípios, para ser discutido em âmbito estadual.
E, como ponto culminante do processo, a cada quatro anos, essas propostas consolidadas em cada estado, são levadas para um grande debate nacional. É quando milhares de pessoas, participantes de algum dos níveis da discussão, são escolhidas por seus pares para os representar.
Poderia parecer utópico, mas isso vem acontecendo há mais de 30 anos no Brasil. São as conferências de saúde, um dos braços do chamado controle social do SUS. E quem já esteve em alguma, sabe a emoção que é participar dessa “festa” da democracia.
Na coluna anterior, a história do SUS parou em 1986, justamente na realização da Oitava Conferência Nacional de Saúde, na qual teve início a participação popular.
As conferências já eram realizadas desde 1941, mas aconteciam dentro da câmara dos deputados e com a participação, quase que exclusiva do setor médico, que era quem decidia o que era bom para a saúde do povo brasileiro.
O país vivia a euforia da abertura, pós regime militar. Pessoas voltavam do exílio e se uniam aos militantes da área da saúde para mobilizar o país para a conferência. Mas, junto com a empolgação, surgiu uma grande questão: como mobilizar uma população que, até pouco tempo, vivia sob uma ditadura, e que desconhecia o processo político que resultou naquele chamado?
Só essa parte da história merece uma coluna inteira. Mas vale dizer, numa época sem celular, que as pessoas eram convocadas, e confirmavam a participação, por meio de telex e telegrama. A divulgação da conferência se deu, também, por meio de muitas viagens dos organizadores e por uma campanha protagonizada pelo ator Milton Gonçalves, gravada em um lixão.
Além disso, em uma cena da novela das oito da época, foi feito um chamamento para que os telespectadores procurassem seus sindicatos ou suas confederações, deixando claro que, qualquer cidadão que fizesse parte de alguma organização social, tinha direito a participar da conferência.
O resultado foi a participação de mais de cinco mil pessoas, representando a sociedade civil organizada de todo o país. Os debates foram consistentes e inflamados nas dezenas de grupos de trabalho e, principalmente, nas plenárias. Até hoje é emocionante ver as imagens da conferência e do discurso de abertura de Sérgio Arouca, disponíveis na internet.
Foi na Oitava, sob o lema “democracia é saúde”, que se consagrou o conceito ampliado de saúde, que vai muito além da ausência de doença. Inclui o modo de produção de uma sociedade e a qualidade de vida da população, passando, portanto, por discussões políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais. Esse conceito, que hoje pode parecer banal, foi forjado por muita luta.
O relatório que resultou da Oitava, entre outras questões importantes, contemplou a discussão do financiamento da área, e recomendou fortemente a criação de um sistema único de saúde. Levado pela Comissão Nacional da Reforma Sanitária para a Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, o relatório seguiu para a discussão parlamentar com uma sustentação política forte, dada a legitimidade e representatividade, até então inéditas, do processo de realização da Oitava Conferência Nacional de Saúde.
E, já que falamos em novela, nas cenas dos próximos capítulos temos a disputa política que acabou resultando na consagração da saúde como direito de todos e como dever do Estado. Disputa que, por outro lado, reduziu bastante os ideais mais amplos, construídos e almejados durante o processo de reforma sanitária. Em outras palavras, o SUS foi, sem dúvida, um imenso avanço. Mas a luta era por muito mais!
Renato Farias
Instagram @fariasre
Siga @coletivo-indra