Dislexia Familiar

Imagem : Nina Rocha

entes queridos

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família

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parente

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 Volta e meia me pego parado a contemplar a diversidade da tão genuinamente nossa língua portuguesa. E a cada nova pausa me encanto pela riqueza do seu léxico, pela possibilidade de falar a mesma coisa de diferentes formas.

Entra um radical, sai outro, muda-se a raiz do vocábulo, outros fonemas ganham novas sonoridades, mas o sentido está ali, permanece vivo na entranha da palavra.

Entretanto-Porém-Contudo-Todavia, em alguns casos o significado muda, ganha diferentes tons e entonações. Sentimos seu sentido - dilacerante redundância - de outra forma ou ele simplesmente se perde com o despertar de consciência de que, às vezes, nem todo sinônimo quer dizer uma coisa só.

O exemplo mais clássico dessa fluidez de significado ocorre no seio familiar. No extenso topo da árvore genealógica se ramifica, com maior frequência na volta das viagens ao interior do caule, da estrutura, do esteio, sobretudo, em duas datas simbólicas: Semana Santa e Natal. Nascimento & Ressurreição. Extremos que antecedem ou precedem a morte. Deleite/o. Nos braços da língua mãe. Extremos simbióticos de uma mesma língua que enraiza e apodrece com a mesma fertilidade.

Quando criança, achamos que todo mundo é família. Por parte de pai, por parte de mãe, independentemente do lado, do grau, da distância é todo mundo sangue do mesmo sangue. “Aê família!

E ele, o sangue, sempre fala mais alto. Não é mesmo? Vem na frente, pulsa forte, coagula os afetos. “Caô família”!

Crescemos um pouquinho e começamos a perceber que laços sanguíneos não determinam nada. Quem era da família vira um querido ente, uma zona intermediária de relações. Ainda que seja mais verbalizado em ocasiões solenes (na maioria das vezes fúnebres) num tom erudito, normativo, deveras arcaico, o tempo avança, os entes seguem conosco.

Por mais que não se tenha a periodicidade do contato, que os encontros sejam espaçados pelo ritmo frenético da rotina, que a vida de cada um se bifurque em caminhos opostos e os rastros fiquem apenas no velho álbum de fotografias, eles despertam em nós boas memórias. E mais do que lembrar, os que conquistam um lugar no nosso querer mais terno mostram que as relações apertam e afrouxam, mas só se soltam quando realmente não há nada de bom ali.

Já adultos - e conscientes de que nem tudo é o que o parece ser - constatamos que parente é a maior parte, a que se perde e fica pelo caminho. Ente é a parte com a qual ainda mantemos um fio de afeto sincero, e família a gente conta no dedo e nem chega a completar um álbum.

Os almoços de domingo mudam com o passar do tempo. A quantidade de pratos diminui, as ausências se tornam frequentes e não precisam mais serem falsamente justificadas, o tempo à mesa encurta e cada um se afasta de volta pra sua casa apressado e saciado.

Com quantos laços se faz uma família? Ou seria melhor remontar as fotografias e perguntar: em quantas famílias os laços já se desfizeram e se afrouxam dia a dia?

A disfuncionalidade faz parte do pacote. Ninguém tem poder de escolha em laços de sangue. E sentenciar isso como bom ou ruim depende muito do local da árvore onde estamos e queremos estar. Inexorável é que o novo significado que a palavra família assume com a chegada da maturidade torna algumas pessoas insignificantes. Termino esse texto doido pra entrar no :

“Léxico Familiar” da escritora Natalia Ginzburg (leitura que com certeza renderá novos frutos) e convicto de que família é um dialeto tão complexamente belo quanto a nossa língua portuguesa.

    Felipe Ferreira

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