Dossiê Maternidade
“Amor de Mãe” e a maternidade como ela é.
“Por um lado, a alegria de ter filhos. Por outro, o sofrimento. Por um lado, a liberdade de não ter filhos. Por outro, a falta de nunca tê-los - mas o que temos a perder? O amor, o filho, todos aqueles sentimentos maternais sobre os quais as mães falam de forma tão sedutora, como se uma criança fosse algo a ser tido, não algo a ser feito. O fazer é que parece difícil. O ter parece maravilhoso…”.
Ano passado eu vivi um processo de resgate e reflexão com a paternidade. Ainda não sou pai, mas ao ressignificar minha relação com o meu, entre leituras, lembranças pueris e vivências áridas, foi inevitável colidir com “O QUE É SER MÃE?” durante o trajeto.
Ali percebi como é impossível falar sobre o papel paterno sem ter a maternidade como elo referencial desse novelo inacabado de sentimentos e idiossincrasias.
Crescemos ouvindo frases como: “mãe é mãe”, “só quem é mãe sabe”, “é igual a coração de mãe”, “ser mãe é padecer no paraíso” e por aí vai. E no geral (ainda que verdades absolutas sejam ilusões convencionadas), acaba sendo isso mesmo, um mar de clichês que universaliza a mãe nessa figura mística que todo homem precisa e que todo amor do mundo carrega em si sem caber.
Ao remontar a paternidade no meu lugar de filho (único) percebi que a condição materna e paterna se construíram durante a história da humanidade por alicerces distintos e que elementos sócio-culturais como o machismo, por exemplo, foram determinantes na naturalização dessa estrutura de poder que privilegia, favorece e isenta o homem.
Enquanto a maternidade é cultuada no altar sagrado da obrigação feminina a paternidade se perpetua como um rascunho opcional da liberdade masculina. A mulher já nasce sob o jugo de viver a maternidade, mesmo que de forma compulsória, e a todo momento é cobrada e domesticada a aceitar passivamente essa “graça divina” e todas as violências ancoradas nessa embarcação solitária.
“Há uma espécie de tristeza em não querer as coisas que dão sentido à vida de tantas pessoas. É possível que seja um tanto triste não viver um história mais universal - o suposto ciclo da vida -, um ciclo que deve fazer vir outro ciclo da vida. Mas e quando nenhum ciclo emerge da sua vida, qual a sensação? Nenhuma. Ainda assim, persiste uma pequena sensação de decepção quando coisas incríveis acontecem na vida dos outros - e você não deseja de fato essas coisas para si”.
Ainda que “Amor de Mãe” não contemple com tanta eloquência o lado da renúncia desse amor materno, ela consegue fazer um recorte diverso e profundo acerca da maternidade e de tudo aquilo que acompanha a priori ou posteriori à sua realização. As mães são retratos naturalistas dos seus contextos sociais, geográficos, econômicos e culturais. Por mais que os predicados mudem de uma pra outra a essência do sentimento que as movem é uníssono.
A frase usada na campanha de divulgação da novela (“Tudo é incerto, menos amor de mãe”) abraça a imensidão característica de uma mãe. Uma certeza tão cabal quanto a morte. O “Amor de Lurdes, Thelmas, Vitórias…” não tem borda, não tem circunstância, transpassa o limite de qualquer redoma que ouse represar sua intensidade. Um dos seus principais méritos está justamente aí, em centralizar a narrativa nesse coração inquieto a partir de uma perspectiva humana, singular.
Assinada por Manuela Dias, uma estreante no gênero, sob o olhar de José Luiz Villamarim a obra traz um tema universal como fio condutor da sua narrativa, e ainda que a direção assuma o objetivo ousado de rebuscar a forma tradicional do melodrama, ela endossa seu poder de envolver o público. Essa universalidade provoca uma identificação imediata. Em algum momento vemos nossa mãe - ou a mãe de alguém - em alguma daquelas situações. Assistir a novela na companhia da minha mãe, “Amor de Ana”, só confirma esse poder que a trama das 9 exercita diariamente. Volta e meia rimos juntos por testemunhar uma situação vivida por nós ou por enxergar no texto ou na reação de alguma das mães ali presentes uma tia, uma avó, uma prima… Outras mães.
O elo afetivo suaviza o estranhamento sentido pela estética de cinema - citada como diferencial em quase todas as novelas recentes - que valoriza um olhar mais subjetivo, a execução de planos sequências e uma paleta de cores mais sóbria em harmonia com a atmosfera criada. A alvenaria artesã nos convida a olharmos a história por outros ângulos, lugares inusitados, num deslocamento que vai do espaço físico à história de cada personagem.
“Para procriar e criar filhos, a moralidade precisa ficar de lado? A única coisa que importa é a vida do filho, enquanto todos os outros valores são relativos”.
Somos agraciados com um leque de mães que entendem e vivem a maternidade por diferentes lugares (a mãe solteira, a mãe abandonada, a mãe de primeira viagem, a mãe superprotetora, a mãe adotiva…). E a maior qualidade da obra está no recorte humano e realista do que é ser mãe numa lente social íntima e compartilhada.
Thelma, Vitória e Lurdes - defendidas com maestria por Adriana Esteves, Taís Araújo e Regina Casé - representam com profundidade as agruras e as delícias que só quem é mãe sente. O amor que as igualam ganha diferentes tonalidades e contornos nos seus ideais, nos seus lares e nas suas vulnerabilidades. Esteves constrói com minúcia a mãe obcecada pela cria, capaz de ignorar princípios e valores morais para que seu filho único alcance a “felicidade” refletida no espelho turvo que ela faz questão de não encarar; Taís comprova todo seu talento na difícil composição de uma personagem cheia de camadas conflitantes nas contradições dos seus papéis: mulher independente, profissional exemplar e mãe; e, por fim, Regina volta às novelas depois de um longo hiato preenchendo a tela em cada cena com a dor, a ingenuidade e o humor genuíno de uma mãe calejada na aridez do sofrimento que representa uma geração materna que resiste diante o machismo, a ausência paterna e de uma desigualdade social que cria mais obstáculos que perspectivas.
Os acontecimentos confrontam as personalidades antagônicas das protagonistas, os meios sociais onde elas cresceram com seus filhos e, sobretudo, a maneira como elas os amam. As maternidades se entrelaçam com outras estruturas maternas e, inevitavelmente, como a figura do homem está inserida diante cada contexto.
“Amor de Mãe” é a maternidade em seu estado bruto, imperfeito. Uma vida privada que se revela pública e cuja leveza - citada pelo público como ausente no recém realizado grupo de discussão da novela - está justamente nas rachaduras entre as infindáveis cobranças cotidianas impostas a mulher desde o momento em que ela se torna mulher. Essa equalização catártica entre o dramático e o cômico é feita no compasso vulcânico do que é ser mãe. Zelo e desapego, confiança e preocupação, calmaria e tormenta, alegria e decepção, um amor incompreensível para quem nunca saberá o que é ser.
Obrigado, mãe!
Te amo!
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Felipe Ferreira
*Citações do livro “Maternidade” de Sheila Heti - Companhia das Letras.