Enchentes e princípios
Nos meses de janeiro e fevereiro é corrente que todo ano, o noticiário traz para o público algumas informações sobre enchentes, deslizamentos e coisas do gênero. No ano de 2020, a cidade de São Paulo ficou debaixo d’água. No mesmo ano, Belo Horizonte parou.
O PODER PÚBLICO TEM RESPONSABILIDADES DIANTE DE SITUAÇÕES COMO ESSAS?
Sim. A população tem alguma parcela? Afinal, o que dizer de construções irregulares e lixo descartado em vias públicas, córregos, rios? Fora tudo isso, existe uma questão de princípios. O projeto iluminista que pode ser resumido rapidamente como a confiança do triunfo da razão humana sobre a natureza selvagem é um ponto importante.
O modelo ocidental estabeleceu uma relação com o meio ambiente de tensão, domínio e superação. A espécie humana passou a se sentir o centro gravitacional do universo e, do alto de sua inteligência “superior” – a Ciência moderna disse algo que estava posto numa visão de mundo compartilhada pelas tradições religiosas abraâmanicas (Judaísmo, Islamismo e Cristianismo), a saber: o ser humano feito à imagem e semelhança de Deus recebeu o direito de domínio sobre as outras criaturas e o planeta. Uma determinada concepção de Ciência acabou por sistematizar esse projeto cultural-religioso. Daí, a arrogância hiperlativa de que podemos controlar muitas coisas.
Ora, algumas culturas indígenas e africanas compartilham a ideia de que seres humanos não estão em oposição à natureza. Mas, são elementos da natureza. Não somos exatamente superiores. Mas, estamos no mesmo plano que outros bichos. Isso aparece nitidamente nas cosmovisões do povo Yanomami que habita parte da floresta Amazônica e do povo nômade Odabi que vive em países africanos como Camarões e República Central-Africana. Em comum esses povos concebem que a Natureza não é algo a ser superado ou dominado. Mas, uma instância da qual fazemos parte. Diante disso, a maneira como construímos nossas habitações deve levar em consideração o fluxo próprio do meio ambiente e a dinâmica do cotidiano de outras espécies. Os povos Odabi e Yanomami não mudam o percurso de rios, córregos e não constroem em certos locais por motivos técnicos. Por exemplo, tornar todo solo impermeável é um convite para inundações. O desmatamento radical do solo é um convite para o esgotamento do que a terra pode nos oferecer, seja através da caça ou do plantio.
De volta aos casos de enchentes. Vejamos o caso da região metropolitana se São Paulo, nos seus primórdios ela foi “planejada” e erguida por projetos de Bandeirantes – homens brancos colonizadores - que tinham como meta explorar riquezas. Daí, o projeto seguiu e os rios Tietê e Pinheiros sofreram alterações de seus cursos naturais. No Rio de Janeiro, boa parte da orla foi aterrada. Ora, falando em princípios. O que está em jogo é a confiança que o ser humano – enquanto espécie – pode modificar a ordem natural das coisas, por conta de seus, digamos, caprichos. Com isso, a conclusão é simples. Se
o meio ambiente não foi ouvido, precisamos corrigir os erros passados. Daí, o mais indicado é transformar as cidades em aldeias. O movimento mais promissor é aprender tecnologias quilombolas ancestrais de construção e levá-las para as cidades.
PORQUE A INSISTÊNCIA NA CRENÇA DE QUE A HUMANIDADE É A PODEROSA CHEFONA DO PLANETA TRAZ MUITOS PERIGOS.
O momento é de observar e aprender com os erros do passado e, escutar quem já faz isso a milênios. Povos indígenas e comunidades quilombolas tradicionais no Brasil, assim como, diversas sociedades africanas que não se renderam completamente ao projeto da modernidade, podem ensinar muita coisa. O momento é de remediar e tomar todas precauções possíveis. Porém, as duas primeiras lições são bem simples, nunca faça que um rio se adapte a ocupação humana. Nunca torne o solo completamente impermeável.
NÓS HUMANOS TEMOS QUE NOS ADAPTAR AO FLUXO DOS RIOS E HABITAR REGIÕES EM QUE A ÁGUA POSSA SER BEBIDA PELA TERRA.
O momento também é, e sempre será, de rever os princípios sobre os quais erguemos as nossas cidades. Basta dizer que o Ocidente definiu natureza como meio ambiente. Enquanto, inúmeros povos indígenas e africanos chamam meio ambiente de uma parte da natureza, reconhecendo que nós humanos somos também, ao lado dos outros bichos, elementos dessa mesma natureza. Talvez, seja dessa ideia perigosa de que nós humanos estamos à parte da natureza que vivamos momentos terríveis diante de acontecimentos naturais como chuvas torrenciais de verão. No final das contas, tudo parte dos princípios através dos quais organizamos o mundo. É hora de rever os nossos.
Renato Noguera
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