Sobre uma mente dualista
Vivemos da comparação, disse Michel de Montaigne, séc. XVI.
Gostaria de rascunhar sobre um dos grandes dramas do pensamento budista: a mente discriminativa ou mente dualista, criador/ criatura, homem/ mulher, certo/ errado, branco/ preto, 8 ou 80. Origem dos sofrimentos no budismo, a mente dual, excluí as possibilidades da pluralidade humana, invalida as diferenças, discrimina os conceitos. E ser diferente, sobretudo nesse momento sombrio que atravessamos, tem sido como errado, impróprio. Todos serem iguais não significa ser os mesmos. Nós, humanos, temos a noção de existência, e isso nos difere dos animais, um cão não sabe que é cão, um gato que é um gato.
As diferenças são estratégias sábias da natureza em sua perpetuação. No reino animal elas garantem a existência da vida como um todo. É como uma orquestra, cada instrumento é pleno em si, e em conjunto produzem um lindo som. No jardim uma flor é bela, mas igualmente compõe um belo cenário. No Sutra de Amida (Amidakyo) o Buda explana que as flores vermelhas emitem cores vermelhas, flores brancas emitem cores brancas e juntas formam o jardim da Terra Pura.
Da ignorância, o individuo negligencia os inúmeros elementos que o forma, ignora sua relação de si para com o outro, o meio ambiente e o universo. E assim ignorando, se deixa levar pela ganância dos desejos, o tempo insatisfeito em uma espiral sem fim. Descontrolado pela ganância e desejos insatisfeitos, ele parte para a ira. E da ira deriva a raiva, a discórdia, o desafeto e a ciranda recomeça. Chamamos de Três Venenos Mentais.
A mente dualista estabelece o meu espaço criando o “eu” e o “seu”, mundo individual e coletivo separadamente. O outro como diferente de nós se torna um inimigo, uma ameaça. Esquecemos que o Todo é a soma da Unicidade. Somos absolutamente interconectados e interdependentes, desde meu nascimento eu vivo do outro, alguém me fez nascer, me cuidou, me alimentou, me ensinou, proporcionou trabalho. A nossa própria respiração é fornecida por infinitos elementos, e neste momento há uma infinidade de causas e condições que, independe de você querer, o faz vivo.
O budismo procura transcender os sofrimentos da mente dual rompendo com a visão do mundo de Buda, da Terra Pura, daquele que transcende a dualidade, a mente discriminadora. Hemos de lembrar que esta Terra não é apenas a ideia de um planisfério além desta vida, mas estados de consciências alterados para além desta dualidade. E o ápice disto é que chamamos Nirvana, que significa extinto, um estado onde todas as comparações se extinguem.
No mundo do Absoluto, duas coisas são uma só. O mundo comparativo não traz paz e serenidade na mente. Para fugir desta dualidade, precisamos partir para o Conceito do Não-Eu (anatman). Na existência não há um eu substancial independente, e sim condicionado a inúmeras causas e condições, onde surgem juntos (samutpada). O Buda revela esse princípio de forma simples: porque isto existe, aquilo existe; se isto for extinto, aquilo se extinguirá. Chamamos Doze Elos da Interdependência:
Ignorância (avidya)
Ação intencional (samskara)
Consciência (vijnana)
Mente/corpo (nama rupa)
Seis sentidos (ayatanas)
Contato (sparsha)
Sensações (vedana)
Desejo (trishna)
Apego (upadana)
Vir a ser (bhava)
Nascimento (jati)
Decadência, extinção (jaramarana)
Falar sobre esses fenômenos condicionados requer tempo e profundidade, mas trago aqui para ilustrar nossa reflexão.
SE DESFIZERMOS DAS PARTES DE NÓS MESMOS, ONDE ESTÁ O EU?
O sofrimento parte do apego da ideia de um eu independente. Porém, não é fugindo deste mundo que alcançamos a Iluminação, assim como a flor de lótus não floresce nas altas montanhas secas do planalto. Elas florescem nas águas lodosas de um campo lamacento, diz um trecho do Sutra Vimalakirti.
A vida, creio eu, depende de um caos organizado. É meio sem sentido, como pode um caos ser organizado? E já pensou que tudo pode ser apenas resultados de felizes acidentes sem uma proposta divina? Honestamente, pensar assim me liberta de todo peso das narrativas religiosas, foi isso que me levou a seguir o budismo, elas não conversam comigo, mas devo compreender as diversas formas de ler a vida.
Precisamos e devemos ultrapassar o mundo dualístico. Você nota uma mente dualista em si? Ele nos separa. E o que nos une? Fica para o próximo post!
A certeza de integrar o Nirvana é a Eterna Alegria. A Eterna Alegria é a Paz Suprema. A Paz Suprema é o Nirvana Incomparável. O Nirvana Incomparável é o Incondicionado Corpo da Lei. O Incondicionado Corpo da Lei é a Realidade. A Realidade é a Natureza do Dharma. A Natureza do Dharma é a Real Similitude. A Real Similitude é a Similitude do Uno.
(Introito do Tannisho)
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Rev. Jean Tetsuji 釋哲慈
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