“Escrevo porque preciso, insisto porque amo”

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Nem sei como começar esse texto”. Foi meu desabafo inicial. Sim, quem escreve lida com dificuldades contínuas. De escolher o tema, o título, a conclusão perfeita, de conseguir aquela entrevista. Escrever não é subir no tapete mágico da inspiração e psicografar. Escrever dá trabalho! Escrever é trabalho! As palavras não se edificam sozinhas para ruírem após a leitura do último vocábulo. Um bom texto transcende a si mesmo.   

O sentimento que move esse texto passou por diferentes lugares, despertou desejos contraditórios e, principalmente, dilacerou dois pólos íntimos do meu eu lírico. A inquietude indomável e o determinismo imutável dos fatores externos que dizem mais sobre um todo do que sobre um pedaço de mim. Escrever é céu e inferno. Ao mesmo tempo que a escrita dá propósito a minha existência ela atormenta e me faz questionar o real sentido (ou a ausência dele) da experiência cega que é estar vivo. 

Ser escritor no Brasil pressupõe lidar com as intempéries da correnteza. De modo mais amplo, fazer arte aqui é uma tarefa árdua, fatigante, de guerrilha. A falta de apreço e valor pelo que não é concretamente palpável, nos faz refletir com frequência se estamos no caminho certo, se toda a angústia vale a pena. O isolamento compulsório desse momento pandêmico só diminuiu os hiatos do encontro que sempre tive com meu lado mais racional e byroniano, que me instiga a entender se as coisas são assim e ponto, se isso (o texto) não é uma projeção do que eu almejo ser ou se sou a rasura kármica de uma alma que ecoa vagante nas próprias histórias. 

Ilhado na cheia de porquês e incompreensões tentei pular do barco e deixá-lo à deriva. Quis guardar o sonho na caixinha de pandora, encarar a realidade nua, crua, a vida como ela é, fincar os pés no asfalto... E falhei miseravelmente. Eutanásia. Experiência de quase morte. Depois de alguns dias, o renascimento. Percebi que escrever me faz sobreviver em meio a escassez poética que assola o mundo. 

Se a era do amor virtual em Medianeras (filme argentino do diretor Gustavo Taretto) nos faz repensar as estruturas das relações modernas, a era da escrita instagramada das redes sociais nos faz rever os conceitos sobre o que é escrito, quem escreve e o que lemos. Limitar a escrita em rimas compulsórias e superfícies sensoriais óbvias é uma opção legítima tanto para quem produz tanto para quem consome. Mas abrir mão de uma identidade literária, de uma uma força autoral para alinhar palavras e narrativas à atender demandas de mercado - ditadas e modeladas pelo próprio mercado - ao que mais se vende, ao gênero que mais se lê, ao formato textual de engajamento mais fácil pode não ser uma escolha honesta com nossa própria verdade.    

A pandemia fez os artistas reinventarem seus ofícios, ressignificarem suas artes. A ausência do contato, uma das características intrínsecas ao fazer artístico, reacendeu a reflexão acerca do conceito e das possibilidades práticas de fazê-lo por vias tecnológicas tentando preservar a troca sensorial e transgressora que o distingue das demais atividades. Leituras virtuais, saraus on line, orquestras e shows intimistas transmitidos em tempo real. O show precisou continuar pra que a gente conseguisse continuar também. Sem as palavras, os acordes, as estrofes sucumbiriamos à realidade. 

O mesmo oásis cultural que nos salva é relegado ao limbo. A antítese da última bolacha do pacote. Quebrada, esfarelada, a que ninguém faz questão de comer, mas que no final das contas sacia a fome de todos. De um lado um governo ignóbil que não dá subsídios as produções, que menospreza seus artistas. E do outro lado? O que fazemos diariamente para fomentar a arte que tanto nos serve? Ocupamos os espaços que resistem para se manterem abertos? Compramos o ingresso do espetáculo ou barganhamos o convite? Contribuímos, aplaudimos o artista de rua que entra no ônibus ou ignoramos sua presença? Consumimos novas literaturas, novxs autorxs, novos sons ou ficamos restritos ao que nos chega? Você compra o livro ou acha que ele é brinde do autor? (sim, isso já aconteceu comigo e fiquei no prejuízo).                              

A descrença que volta e meia me comprime o peito brota dessa escassez de valorização e oportunidades. Fama, sucesso e reconhecimento são três estados de espírito relativos que não significam a mesma coisa, e nem sempre, caminham no mesmo lugar da mise en scène. Eu escrevo e desejo simplesmente viver do que transborda minha alma. Não é pedir muito, não é sonhar alto. Meus pés mais do que nunca, estão no chão, descalços. Desconfio que o problema esteja no solo não no solado. Nem todo escritor é showrunner das palavras (termo em inglês que define um encarregado ao trabalho diário de um programa ou série de televisão), nem todo poeta recita poesias. Eu não executo bem nenhuma dessas funções adjuntas. Apenas vivo escrevendo. Apenas escrevo vivendo. Não importa a ordem. O sentimento é o mesmo e ele nos faz ir e voltar. No tempo, no espaço, no ninho, no maramor.                  

Na época que fiz teatro escutei uma vez que um ator ou uma atriz precisa estar por inteiro no palco seja pra se apresentar diante uma plateia com uma ou cem pessoas. Continuarei a escrever independente para quem ou quantos sejam. Quem me lê, quem me sente, é motivo suficiente pra fazer cada palavra do meu texto valer a pena, cumprir o seu papel. E isso é soberano à quantidade. Prefiro o calor orgânico das impressões a cada nova leitura do que o calafrio dos números de visualizações.   

Felipe Ferreira

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