Escutar, escutar e escutar
Você escuta a Vida? Que som a Vida tem?
O Buda Shakyamuni já exortava em seu tempo uma prática muito simples, o Escutar. É sabido que o Buda proferiu 84 mil Sutras (discursos), mas ouvi certa vez que Ele escutou 84 mil lamúrias para proferir 84 mil caminhos de libertação .
No budismo Shin, ou Terra Pura, nós praticamos a Escuta do Dharma (ensinamentos), Monpô, algo pouco conhecido no budismo ocidental, uma espécie de meditação auditiva. Escutar o Dharma não se faz apenas ouvindo as homilias dos monges e as liturgias sofisticadas, mas também estudando e refletindo sobre algo. O Dharma está em toda parte desde que estajamos despertos, e qualquer coisa pode ser manifestação do Dharma.
Essa prática é preconizada pela chamada Mente/Coração Confiante, Citta-Prasadi em sânscrito ou Shinjin em japonês. Digo Mente/coração, pois para o oriental ambos se encontram no mesmo local, não o cérebro, mas no peito. É uma prática relativamente simples: a medida que eu escuto o Dharma, eu desconstruo um olhar e reconstruo um novo sobre si e todas as coisas. Algo semelhante ao processo terapêutico, mas criado há 2600 anos. E um elemento importante nesta prática é a Atenção Plena, o sétimo dos Oito Nobres Caminhos, Sathi (sânsc), Nen (jap.) ou Mindfullness, tão em moda ultimamente. O termo Nen em japonês é composto de dois ideogramas: 念, o primeiro 今 é agora e o segundo 心 coração. Viu como fica mais claro entender conceitos pela escrita oriental?
Em vários momentos vocês devem ter percebido uma frase nos posts, Namu Amida Butsu. Namu vem do radical Namas, como Namastê. Amida Butsu significa Buda Amida. A frase traz o significado de uma saudação auspiciosa, uma recordação profunda do Buda Amida e suas estratégias salvificas que liberta os seres sensíveis dos sofrimentos. É como chamar alguém pelo nome e saber dos seus gostos, hábitos, jeitos, formas.
Buda Amida e Buda Shakyamuni são figuras distintas, o primeiro é um Buda fora do nosso tempo e espaço, o segundo é o príncipe Sidarta Gautama. Mas existe mais que um Buda? No universo existem Budas tão numerosos quanto os grãos de areia do rio Ganges, dizem os textos sagrados, e cada Buda possui sua Terra Pura, seu campo de realização. O budismo já vislumbrava multi tempos e multi verso. E há um Buda neste panteão de iluminados que se destaca entre os demais, o chamado Buda Amida (jap.) ou Amithaba aos que já frequentam centros tibetanos. Amida significa a Luz e Vida imensuráveis. Esta frase Namu Amida Butsu não é um mantra de invocação, mas um canto de refúgio e gratidão em saber que o Buda me ilumina a todo instante quando eu recito seu sagrado Nome e me conecto à sua Luz. Esse refúgio e essa gratidão ocorre ao escutar o Dharma, dou conta da minha incapacidade de me libertar sozinho.
A característica deste Buda é que ele se coloca como protagonista personificada da Sabedoria e Compaixão compadecendo-se dos seres sensíveis e os libertando. O objetivo da vida, caso perguntem, é tão somente sair desta Terra Impura de desejos e sofrimentos para uma Terra Pura, de Alegria e Tranquilidade, proporcionada por algo externo a nós, algo incondicional e indiscriminado a todos. Para nós, este Buda representa a Realidade Última, o Sagrado inefável, o Sunyata, o Vazio dos budistas. Contudo não é um deus ou um demiurgo, não há esta narrativa criacionista no budismo, mas o Uno ou a Totalidade da Existência revelada pela multiplicidade de fenômenos relativos. Poderíamos escrever por dias a respeito deste Buda.
O ideal budista é mostrar que todas as coisas são vazias em substância própria, mas sim interconectadas e impermanentes. Vamos pensar no exemplo clássico na linguagem japonesa: o tatami. Aparentemente, nada de especial. O tatami é feito de palha de arroz trançada. Mas antes disso, a palha de arroz precisou da terra úmida, de água, de sol, de vento, de insetos, alguém cortar, secar e trabalhar a forma final do tatami. Então, o tatami é feito de não-tatami.
ASSIM SE FAZ COMIGO, O QUE SOU EU, O QUE ME FAZ SER O QUE SOU? SOU UM EU DE UM NÃO -EU.
Desta forma, tendo consciência de toda essa interconectividade, além de outros ensinamentos do Dharma, eu desconstruo um olhar e reconstruo uma nova visão. Sentindo-se tomado pelo ar da graça que a iluminação me faz despertar sobre minhas ignorâncias, egoísmos, meu olhar se ajusta em compaixão e plenitude. Escutar é um ato simples que não quer esforço algum, apenas a uma entrega, algo semelhante de escutar um amigo desesperado. É o que nos resta fazer, escutar e despertar para minha realidade limitada.
O despertar sobre si e sobre a Vida é narrada em uma parábola famosa: a rã e a garça. Conta que a pequena rã mora em um poço, se dá por contente e satisfeita imaginando apenas existir seu lugar como realidade. Mas a garça insiste dizer que há um oceano, um poço de água muito maior e que poderia mostrá-la por um sobrevoo em suas costas. A rã nega confiante na inexistência desse poço gigante, mas há algo em sua curiosidade que a fez subir nas costas do pássaro. A pequena rã deslumbra-se com tamanha imensidão. A iluminação age em nós como o olhar do pequeno anfíbio sobre o oceano. E nós, vamos continuar no nosso poço, ou dar este sobrevoo?
Ó Saichi, onde fica sua Terra da Bem-aventurança?”
“Minha Terra da Bem-aventurança fica bem aqui.”
Asahara Saichi, poeta japonês séc. XIX.
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Rev. Jean Tetsuji釋哲慈
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