Esperanças volantes
Imagem capa: obra de Yaacov Agam
É como se nos permitíssemos sonhar com outro mundo.
Deixando o sol ocupar os espaços dessas coisas velhas que a gente insiste em acumular aqui e ali. E ele levaria a poeira branca que sempre vem pairar sobre os móveis. O sorriso que não consegue mais ser segurado e escapa também pelos olhos e se espalha. A vida que vale a pena nesse momento. A vida que ali não tem fim. É o som do vazio que importa. São as cores da despedida que se despedaçam quando vem o vento que bate e refresca. O vento alegre que salva a vida. Os aprendizados que vêm com o corpo.
É naquele instante-lugar que eu estou sendo.
E me permito observar o quadro do passarinho rabiscado, que eu imagino que vai voar assim desengonçado como o desenho. Que vai pintar os céus e os verdes. Os azuis. Os cinzas. Os pretos. Que vai além do possível buscar no ancestral o significado da vida. E vai dizer que lá está a resposta. E as dores, os sons, os odores que fazem sentido. Porque nos encontrar na volta é andar para frente. E eu me debruço nas tuas linhas e as roubo sorrateiramente, ainda que quando as cole não tenha o mesmo charme que só você consegue dar para elas. Você as pinta em formas escritas que ecoam os teus sons mais profundos. Talvez por isso eu perca, porque deixo escapar esse som. Que não é da máquina, do teclado, da caneta. Mas eu as repito com carinho, as arrumo do meu jeito e formo um barulho que é todo meu, que faz plec-plec-plec. E eu sei que você ri, e é o que importa.
Eu que desisti do mais profundo, de penetrar naqueles agora-passado.
Eu que fui ainda ontem sempre, a promessa do futuro. E me farto no abandono de tudo. E deixo pelo caminho todo o sentido e todo o sentido. Me agarro ao fútil da folha que cai aos pés descalços. Sustento na superfície da água os meus desafios. Enquanto a água ferve e as bolhas começam a se divertir, eu vivo ali. Mas porque é preciso levantar a voz contra os horrores desses tempos de negações e sentimentos planos. É preciso pintar de brisa o verde-oliva. Transformar em dança a marcha fúnebre que insiste em estar na paisagem. Que atrapalha o caminho de quem passa em rodopios, de mãos dadas e de abraços dados.
É preciso levantar a voz para que o espaço não seja deles.
Que tudo ainda fique em pé. Assim que eu grito e me coloco, no silêncio das gotas de chuva que caem sozinhas, uma a uma. Me coloco em desafio contra dor insistindo no estar em sorrir de novo. Em dizer que não para o não. Sim para o sim. É desistir da vida que se vive dessa lembrança indireta dela própria. Querer o todo que só é capaz de realizar-se no nada e que se oferece a todos que são capazes de apreender esta matéria fugidia. Essa descarga elétrica que se realiza em calafrios. Essa é a vitória e a postura de quem já não é. De quem perdeu o medo da monstruosidade das coisas e encontrou a solução terceira. Que não é a tranquilidade que repousa ali, mas a leveza da retidão flutuante que não escorre pelos desvios do corpo. Que se mantém firme e abre os portais da esperança, onde é ouvida a músicas de flautas agudas e dissonantes que fazem coceguinhas no espírito. Abre-se o mistério e o feitiço da totalidade do amanhã de sol. Que é o cântico do amarelo.
É esse estado que se atingirá quando nos encontrarmos.
Este que não se capta em palavras escritas e nas tuas consciências instantâneas. Este que é o respiro da vida e que vai nos colocar para além do sentido imposto. Com ele vamos vencer a morte e o futuro que já é sido. Unidos aos vaga-lumes que vão sendo assim como sabem, balançando as sombras flutuantes do brilho fugaz e instantâneo. Essa tênue memória de vida que se entrega a totalidade do mar e se dissolve nele. Tudo que te entrego estará ali. Corto a dor do que te escrevo e dou-te a minha inquieta alegria. E isso vai continuar, enquanto houver semblantes feitos de puro ar, nós estaremos lá.
Arthur Spada
Instagram @arthurspada
*Escrevo esse texto em homenagem aos 2 anos do Blog, e em profunda gratidão por fazer parte deste coletivo tão incrível, que permite que sejamos mais e tenhamos esperança em uma sociedade melhor para todos.