Evite os limites de velocidade

Henri Cartier Bresson

Henri Cartier Bresson

A vida privada e a esfera da política pública institucional possuem formas diferentes de funcionamento. Nem tudo o que funciona em um desses ambientes, serve ao outro. Gerir os gastos de uma família, por exemplo, é bastante diferente dos gastos do governo (a despeito de tal argumento ser utilizado de forma frequente para defender certas políticas de arrocho), de modo que é preciso entender de forma mais detida com qual campo se está lidando, para escolher a melhor forma de agir.

Certamente por outro lado, algumas lições (ou intuições?) que aproveitam à vida privada também podem servir para a Política e vice e versa – especialmente ao se considerar que uma não existe sem a outra, por óbvio. Discuto aqui, que nem tudo o que se pode fazer – ou que há uma autorização para tanto – deva ser feito. Isso parece funcionar tanto para nossas opções particulares, ou para as escolhas políticas institucionais.

No livro “Como as democracias morrem” os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt discutem o que pode levar ao colapso das democracias, especialmente quando sua corrosão decorre de um governo devidamente eleito, apresentando alguns comportamentos de governantes que colocam fim a esse regime, tornando-o autoritário (Turquia, Venezuela, Hungria são citados no livro). Mostram em decorrência, que sequer a democracia Estadunidense, apesar de sua trajetória de mais de 200 anos sem rupturas, está imune a esse temor, principalmente após a eleição de Donald Trump.

Os autores argumentam, que a manutenção de um regime democrático depende sobremaneira do respeito a regras que não são escritas, dentre as quais destacam a tolerâncias mútua (aos opositores) e o respeito ao que eles chamam de “reserva institucional”. Essa reserva significa que, embora uma atitude esteja adequada de acordo com a letra da lei, talvez seja melhor não a adotar quando claramente violar o seu espírito.

Ou seja, o fato de determinado ato ser lícito, talvez não represente a melhor opção para vencer um oponente, ou implementar uma determinada agenda, quando a preocupação é salvaguardar todo o sistema. Como argumentam os autores, abusar do uso de prerrogativas legais pode enfraquecer o sistema como um todo, forçando a uma guerra institucional. O Poder deve ser usado de maneira comedida, portanto.

O mesmo vale para a esfera particular. Nem sempre algo que nos é autorizado ou permitido deva ser feito, não apenas no sentido de não ser tomada determinada atitude num momento específico, mas no de evitar o abuso de sua esfera de direitos – ou usá-los ao seu limite - vez que estes podem prejudicar ou conturbar a relação com terceiros, forçando ao mesmo jogo duro que acontece com as instituições. Empurrar as relações para suas fronteiras, dificulta o retorno aos limites anteriores, além de abrir perigosos precedentes para que esses limites sejam testados novamente. Vamos pensar em quais situações é melhor evitar as trincheiras de nossos direitos, no nosso trato cotidiano? Isso seguramente vale para nossas relações de trabalho, família e amizade.

O limite de velocidade existe para não ser ultrapassado, sob pena de punição. O que se defende aqui é um passo anterior, que se evite andar, ou se manter, nesse limite, trafegando sempre numa velocidade segura abaixo dele. Isso porque, é muito mais fácil cruzar a linha quando você já está em cima dela. E depois que a cruzamos, até onde se poderá ir?

E esse agir ético não é adotado por mera comodidade, mas para manter as relações em patamares saudáveis, que permitam a sua perpetuação. Se a democracia americana tem sido bem-sucedida por mais de 200 anos em razão dessa “reserva institucional”, muito provavelmente teremos relações pessoais mais seguras se mantivermos prudência ao tratar com o outro.

Tenho a impressão que, em particular para a vida privada, não seja suficiente apenas evitar o limite da ação, mas que também sejam tomadas atitudes ativas, com a mesma finalidade. Que se aja mesmo quando não exista uma obrigação imposta (legal, social ou de qualquer outra natureza), porque esse seria o “agir correto”. Numa sociedade em que se faz cada vez mais necessário buscar formas de cooperação (discuti isso em minha primeira coluna aqui), esta somente é possível se, mesmo os desobrigados, começarem a atuar em prol de uma sobrevivência mútua.

Mas, enquanto não pudermos ter certeza do que é esse “agir correto” ou qual a melhor forma de cooperação (como e quando ela é bem-vinda), parece ser conveniente que nos mantenhamos abaixo de nossos limites de velocidade, e adotemos a reserva institucional para a vida particular, em nossas relações cotidianas.

Arthur Spada

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*Foto de Henri Cartier Bresson no Vélodrome d'Hiver (Paris, França), em 1957.