Quando a militância se torna desnecessária

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Militância: Prática da pessoa que defende uma causa, busca a transformação da sociedade através da ação: militância política, social, estudantil.

Bom, como todo e qualquer texto precisamos disponibilizar um contexto para que as coisas façam sentido, portanto, vamos lá: meu nome é Karolen, tenho 25 anos, sou jornalista e trabalho na área de críticas há mais de nove anos. Dito isso, existe um pequeno detalhe sobre mim, algo que não sinto tanto a necessidade de usar uma placa dizendo, porque assim como o fato de ser mulher ser algo que nasci e me identifico como, isso também está neste mesmo patamar. Mas enfim, sou bissexual.

Quando tinha doze anos assisti “Imagine Eu & Você”, sim, esse mesmo, com a Lena Headey, e percebi que se apaixonar por outra garota fazia todo o sentido. Aos quinze me aceitei homossexual, porque ser bi era algo inimaginável na minha mente. Entretanto, aos vinte entendi que era perfeitamente normal se sentir atraída por homens e mulheres. Agora vamos a segunda parte de contextualização: meus pais são separados desde que tinha cinco anos e meio de idade e depois de viver seis meses com a minha mãe, decidi morar com a minha avó paterna e cá me encontro desde então, residindo na mesma casa que minha vózinha, um dos amores da minha vida.

Quem é a minha avó? Terceira e última parte antes de iniciarmos o debate: uma senhorinha que não tinha obrigação alguma de criar os três netos, mas fez isso com todo o amor do mundo e da melhor maneira que ela pode encontrar. Em cinco dias ela completa 82 anos e é a mãe que nunca imaginei ter. Além disso, ela é uma taurina raiz, sabe, dessas que protege os dela com toda força possível, apegaaaaaaaaaada e bem ciumenta. Difícil de cortar o cordão umbilical e mima sem precedentes.

Enfim, amanhã é dia das mães e não importa quem a pessoa que representa isso para você seja, é possível entender quando alguém fala desse amor incondicional que existe entre quem representa este lado maternal e o filho. Minha mãe é minha avó e ela nasceu em 1937, numa época muito diferente da minha em que o contexto histórico, cultural e social se difere do meu em muitas categorias. Por esta razão, nossa relação, as vezes, entra em conflito, pois pensamos de maneira bem diferente.

No momento em que descobri sobre a minha orientação sexual compreendi que teria um conflito com esta mulher que enxergo como minha mãe. Os anos foram passando e minha avó sempre se mostrou muito despreparada para nossa sociedade em que aqueles que são homoafetivos lutam por seus direitos, podem casar e adotar crianças. Apesar de algumas vezes se colocar numa posição de cada um vive sua vida e ninguém tem que se intrometer, em outras, comentários como “isso é uma doença” fazem parte dos diálogos.

Em casa, minha posição nunca foi extremamente ativa. Para evitar conflitos, a maior parte do tempo em que comentários como o último surgem, evito dizer algo e me reservo o direito de ignorar. Nunca fui uma militante 100% dentro do meu lar, porque meu amor pela minha avó, meu amor por tudo que ela fez e continua fazendo por mim segue maior do que a necessidade de discutir por algo que não vai ser mudado. Como já disse, ela tem 81 anos, não posso exigir dela o mesmo contexto social que o meu, os mesmos pensamentos, a mesma visão de mundo. Minha avó, que criou o filho sozinha e alguns afilhados pelo caminho, além dos netos, merece uma velhice calma, o que não está tendo completamente devido ao quadro depressivo.

Diante desses pontos, como vou dizer: “Oi vó, tudo bem? Sou bissexual, estou noiva de outra mulher e me casarei em aproximadamente dois anos.”, sem que eu “mate a velha” do coração? Portanto, mediante tais fatos, me questiono todos os dias se falo ou não. A maior parte do tempo tendo pelo não, e em alguns momentos, o sim surge, como uma necessidade de ser honesta.

Eu sei quem sou, já faz alguns anos que não tenho dúvidas sobre as decisões que tomei e continuo a tomar em minha vida. Nunca tive a necessidade de me afirmar a cada segundo pro mundo, isso faz parte da personalidade que possuo. Diria, facilmente, que este é o texto mais pessoal que escrevo. A opção por não militar dentro da minha casa não foi tão fácil de tomar, entretanto, conforme os anos vão passando a busca por um ambiente pacífico se torna mais forte, afinal, não estamos todos em busca de um pouco de paz e ser feliz sem conflitos? Então, por que não permitir a pessoa que, provavelmente, mais me ama neste mundo de ter uma velhice o mais pacífica possível.

Eu tenho, assim espero, muitos anos pela frente para colocar a cara a tapa, militar seja pela escrita, seja por uma posição, seja falando, tenho saúde mental para aguentar os trancos que a vida dá, especialmente quando se é mulher e bissexual. Muitos anos para aprender, crescer, ensinar, mudar e evoluir. Enquanto do outro lado, minha avó já esgotou sua cota de eventos traumáticos de infância/adolescência e vida adulta, já deixou e muito de ter algo que queria em prol da felicidade daquelas que ama, então, ela mais do que merece seus anos – espero que ainda muitos – de paz. Coloca-la numa posição como esta ainda implicaria nas preocupações sobre como a sociedade me trata.

Com isso, minha avó não vai ao meu casamento e provavelmente, nunca vai conhecer meus filhos, seus bisnetos – que virão só bem lá no futuro. Minha avó não fará parte desta etapa da minha vida em que formarei minha própria família, ao menos, não em sua totalidade, não da forma como gostaria. Mas esse descarte da militância dentro de casa, no meu relacionamento com esta mãe duas vezes, não me faz menos feliz, porque consigo entender que ela não está preparada para isso agora e nem estará, ao menos, nesta encarnação. Portanto, me desfazer da militância neste contexto não me torna menos bissexual e nem faz a causa dentro de mim menos importante, apenas optei pela felicidade de alguém que sempre optou pela minha, por entrega-la alguns anos mais tranquilos.

Deixar de militar por algum motivo não faz de uma pessoa menos parte da comunidade LGBT. Cada um tem suas razões para tomar certos tipos de decisões seja dentro da sua residência ou fora. Seja por motivos pessoais ou profissionais. Para ser da comunidade, não significa que você precise ser militante 24 horas por dia e sete dias por semana. Afinal, quem ri demais é desespero.

Feliz Dia das Mães.

PS.: A militância de cada dia é importante e extremamente necessária na sociedade atual em que vivemos. Só antes de militar é preciso compreender também o histórico social e cultural do outro para que isso seja feito da forma correta. Afinal, ninguém é capaz de mudar os pensamentos de outra pessoa, apenas oferecer conteúdo para que ela reflita a partir do seu referencial e decida, a partir disso, se posicionar de forma diferente.

Karolen Passos

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KAROLEN PASSOS É FORMADA EM JORNALISMO POR CULPA DA LOIS LANE, CRÍTICA DE FILMES E SÉRIES HÁ NOVE ANOS E MARKETEIRA NO RESTANTE DO TEMPO. PASSA TANTO TEMPO NA ESTRADA QUE JÁ PERDEU PARTE DO SOTAQUE CARIOCA. LEITORA ÁVIDA DE FICÇÃO, BIOGRAFIAS E QUADRINHOS, ELA NÃO DISPENSA UM BOM CHÁ PRETO E UMA MÚSICA NO ÚLTIMO VOLUME. 

EDITORA-CHEFE E CO-CRIADORA DO SITE LESB OUT!, E CRÍTICA DO CINEPOP DESDE 2017.

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