Coletivo Indra

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Existe amor sem raiva?

Em primeiro lugar é preciso diferenciar emoções de sentimentos. A partir das pesquisas do médico neurologista e neurocientista português António Damásio, definimos as emoções como programas de ações que ocorrem neurofisiologicamente, isto é, no corpo.

Enquanto os sentimentos são vivências afetivas mais duradouras do que as emoções, as experiências mentais do que está acontecendo com o corpo, as emoções são reações  aos estímulos externos ou internos. Portanto,  podem ser:

pessoas, eventos, objetos, ideias, memórias, pensamentos ou qualquer outra coisa que passe pelos cinco sentidos – audição, olfato, paladar, visão ou tato.

De acordo com vários estudos de neurociência, podemos falar em seis emoções básicas:

alegria, medo, surpresa, tristeza, nojo, raiva.

Possuímos meia dúzia de emoções para dezenas de sentimentos, tais como:

amor, ciúme, culpa, ódio, orgulho, esperança, gratidão, ansiedade, alívio, empatia, mágoa, inveja, vergonha, raiva, alegria, surpresa dentre outros.

Os sentimentos podem ser “positivos” ou “negativos”. No primeiro caso, eles nos aproximam de pessoas e coisas. Enquanto no segundo, nos afastam. De maneira bem básica, os conceitos de aproximação e afastamento ajudam a compreender. Pois bem, se uma emoção é uma reação incontrolável, aguda, inconsciente e momentânea.

Por exemplo, o que ocorre diante de um cão feroz a dois metros de distância de alguém? Essa pessoa sente frio na barriga, que significa que o fluxo de sangue saiu daquela região e foi para as extremidades (pernas e braços intumescem, mãos e pés ficam suados) para ajudar a correr, se o intestino e bexiga estiverem cheios:

A tendência é esvaziar para que o corpo fique mais aliviado. Esse alto nível de medo é involuntário, passageiro e promove uma ação: fugir do cão. Por essa e outras, é preciso dizer, todas as emoções são importantes.

Uma pessoa sem a emoção do medo diante de um cão feroz não teria impulso natural da fuga. De volta à definição dos sentimentos, não custa repetir que eles são interpretações das emoções e formas de vivenciá-las.

Por exemplo, amor e ódio não são emoções, são sentimentos. O ódio é um sentimento que pode estar ligado à raiva, mas também pode advir do medo. Algumas pessoas podem odiar cães ferozes, enquanto outras urinam de medo.

Uma consideração sucinta dessas descrições é a seguinte: emoções e sentimentos formam nosso sistema afetivo. Enquanto uma emoção é aguda, mais instável; os sentimentos são “crônicos”, isto é, mais duradouros ainda que não sejam permanentes.

Após essa introdução, vamos tratar da proposta deste breve artigo, uma emoção e dois sentimentos.

A raiva é, ao mesmo tempo, uma emoção e pode se transformar num sentimento. Mas, no caso do amor, estamos tratando de um sentimento. A pergunta que trouxe pessoas interessadas nesta leitura é bem simples: O amor pode existir sem dois afetos que lhe são opostos?

A resposta não vai surpreender ninguém: Não existe amor sem raiva. A emoção da raiva é fundamental para estabelecer fronteiras entre mim e o outro. Uma pessoa não pode viver em fusão com outra.

Uma maneira de interpretar o nascimento é como ato de separar de um mundo feito exclusivamente para atender todas as necessidades do bebê, o útero. Ou ainda, cortar o cordão umbilical que é a fonte de nutrição. Pois bem, a raiva é emoção básica, dentre outros fatores, porque através dela, podemos definir os nossos limites.

A raiva é uma emoção que nos ajuda a dimensionar as fronteiras, até onde alguém pode ir: seja nos tocar, o quanto pode dizer e o que permitimos que nos seja feito sem implicar em mal-estar.

A raiva é um tipo de termômetro que ajuda a sinalizar o que suportamos. Pois bem, em relação ao amor – um sentimento que é carregado de elementos sociais, culturais e históricos; é preciso dizer que sem raiva, amar é um ato impossível. 

Numa leitura geopsicológica, não podemos desprezar a nossa raiva para manter um relacionamento amoroso. Nós precisamos sentir raiva de quem amamos, mas do que um tempero, é uma emoção saudável que dá os limites da outra pessoa. A raiva é uma espécie de irritação, uma sensação de incômodo. Não é possível que uma pessoa viva sem se sentir incomodada, a ausência de raiva pode implicar que alguém acredite que o desejo de quem ela ama, é o seu próprio desejo. O que pode causar distorções em que o seu bem-estar seria somente realizar o desejo de quem ama.

De maneira bem geral, não existe amor sem raiva. O amor sem raiva pode se transformar no amor que pratica a ira, que age baseado no ódio. Enquanto, o amor que reconhece a raiva assim que ela surge e a compreende,  não causa dano algum a quem amamos.

A raiva é uma emoção necessária, sem ela não conseguimos distinguir o que precisamos e desejamos das necessidades e vontades da outra pessoa. Raiva é uma emoção que demarca limites, uma vivência afetiva que ajuda a estabelecer as fronteiras do nosso desejo, o tamanho da nossa expectativa e um design da nossa frustração.

As emoções duram menos tempo do que os sentimentos. Por isso, é importante saber que o amor não se desfaz numa situação de raiva. Mas, a raiva contribui para definir algo que precisamos conservar ou mudar para que o amor continue florescendo. Por exemplo, alguém pode dizer:

“Eu a amo, mas fiquei com muita raiva quando ela decidiu sozinha sobre algo que diz respeito à nossa vida em comum”.

Nesse exemplo, quando uma pessoa identifica a emoção da raiva, ela pode avisar que precisava compartilhar a decisão e que no futuro, devem agir em parceria num caso semelhante. A raiva pode funcionar com sinal de que um comportamento precisa ser modificado. Sem a consciência da raiva, ou fingindo que ela não existe, ela pode se repetir cada vez com mais frequência e vigor, transformando-se num monstro quase invencível. Com o passar do tempo, não assumir a nossa raiva em relação a quem amamos é uma boa receita para romper o relacionamento.

A partir da geopsicologia de Orunmilá, podemos dizer: para amar com intimidade e profundidade, não dispense a sua raiva. A raiva não é um programa de ataque, mas uma maneira de preservação de si e das pessoas amadas. Porque através dessa emoção, podemos identificar o que nos incomoda. 

Sem autopreservação a energia do amor pode se transformar em ira, ódio e ataque. O que não acontece de uma hora para a outra. Mas, se não darmos a devida atenção para a emoção da raiva, ela pode se transformar num sentimento e acabar enfraquecendo ou, até mesmo, sufocando o amor. Portanto, não perca contato com a emoção da raiva. Sem raiva não é possível experimentar o amor em toda sua plenitude.

Renato Noguera

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Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento de Educação e Sociedade, Programas de Pós-Graduação em Educação e Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (LEAFRO). Coordenador  do Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Infâncias (Afrosin). Noguera é ensaísta, roteirista e dramaturgo.

 Referências

DAMÁSIO, Antonio. O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

ELKMAN, Paul. Emotions revealed. New York: Times Book, 2003

Abaixo deixo o link do vídeo Existe amor sem raiva? Disponível no Youtube