Golpe ou desmoronamento?

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Acompanhar o noticiário político brasileiro é se deparar, dia sim dia também, com a discussão acerca da qualidade do nosso regime democrático, dadas as crises entre os poderes, e a possibilidade de erosão deste por uma via ilegítima de usurpação.

A ciência política contemporânea tem se debruçado sobre o estudo de regimes que se desmancham por dentro, pela conduta daqueles que ascenderam ao poder de forma legítima, mas, uma vez lá estando, agem contra os princípios que garantem a autonomia dos poderes, atraindo mais poder para si, bem como obstando a possibilidade de oposição.

Isso também se revela também pela promoção de veículos de imprensa favoráveis ao regime e perseguição aos contrários.

Nesse enredo, o Brasil ocupa um triste lugar privilegiado para observadores. A atual gestão pretende desmantelar nosso regime democrático? Em eventual derrota eleitoral, haverá a passagem de poder ao vencedor?

 Quais serão os efeitos da desorganização de órgãos de controle e de participação social para os próximos anos? Soma-se a isso, a extensiva presença militar e o discurso radicalizado, contrário as instituições, que seduz grande parcela da população, desde aqueles mais desinformadas a ídolos do sertanejo.

Golpes de estado, no sentido clássico do termo, consistem em um fenômeno que é pouco observado nos dias atuais. Se por um lado foram praticamente erradicados do mapa, por outro cresce cada vez mais pesquisas e artigos que utilizam figuras relacionadas ao golpe de estado, principalmente em versões adjetivadas.

Assim, falar em golpe de estado, hoje, pode significar um golpe parlamentar, judicial, constitucional e outras tantas variações que aparecem. Para alguns pesquisadores, essa utilização seria indevida, na medida em que pode levar a uma diluição do conceito, fazendo com que qualquer remoção presencial – mesmo que observados os requisitos legais de forma e conteúdo – seja tida como golpe.

Uma das primeiras descrições do que consistiria um golpe de estado data do século XVII, e refere-se a um ato que seria praticado por um monarca para assegurar o seu poder sobre o reino, em benefício do bem comum.

Este, seria um ato extraordinário e posto em prática de forma rápida, surpreendendo os alvos, de modo a não poder ter sua execução impedida. Modernamente, o golpe passou a ser qualificado por alguns também como um ato espontâneo e de violência potencial, mas que visaria a substituição do regime por outro, razão da necessidade de legitimação dos atos golpistas após a sua execução.

As versões adjetivadas do conceito de golpe de estado utilizadas contemporaneamente nem sempre se dão com a presença de todos os requisitos de sua utilização clássica, especialmente no que diz respeito ao fator surpresa e o uso da violência.

Emerge-se, nesse passo, a discussão sobre a necessidade ou não da presença militar para poder qualificar o ato com essa natureza, dado o controle das armas que assegure sua efetivação.

Em que pese o debate acerca da correta terminologia, que conduz a efeitos práticos relevantes, uma vez que um regime qualificado verdadeiramente como golpista pode sofrer sanções internacionais e outros agravos, fato é que não dá para reputar o golpe de estado como algo completamente superado pela história.

O Brasil de 2021 não está livre nem de ver seu regime democrático ser corroído por dentro, tampouco livre de assistir um golpe no seu sentido mais clássico. Há disposição para ambos. As forças armadas brasileiras agem de forma dúbia, cuja atuação na prática por vezes se afasta de uma retórica de respeito aos limites constitucionais ao poder civil.

No limite, permanecem atreladas a esse desgoverno, dando demonstrações públicas de apoio (por vezes vergonhosas e com muita fumaça), aceitando serem utilizadas de forma política e reagindo de maneira desmedida contra aqueles que fazem críticas pertinentes a seus quadros.

Recentemente, o general Heleno afirmou que o exército teria um papel de poder moderador, com base na leitura mais que equivocada – e contrária a interpretação do STF – do art. 142 da Constituição Federal.

É um absurdo completo defender esse papel para os militares num regime democrático, a menos que quem o faça não esteja conseguindo esconder suas pretensões ilegítimas.

Nada garante que não existam setores suficientes no meio militar para colocar em marcha uma empreitada golpista.

Já ouvi dizer de estudiosos que em 1964 teria sido possível uma reação da sociedade civil contra o golpe. Agora, estamos em um momento crítico e de estresse institucional, cujas respostas às ameaças por vezes são insuficientes para coibir que no dia seguinte novos ataques sejam feitos. O cenário está posto. Devemos nos preocupar apenas com a ruína por dentro, ou também com o cabo e o soldado subindo a rampa do planalto?

Arthur Spada

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