“HARD” - O sexo por trás da lente da hipocrisia.

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Até hoje, tenho arquivada na memória uma entrevista do roteirista e cineasta cearense Karim Aïnouz sobre os bastidores da série “Alice”, da HBO, onde ele fala sobre como filmamos muito bem a violência e perdemos a mão ao filmar sexo. Esse fio terra se adensou em mim e sempre evoco-o na tentativa de entender melhor nossa produção audiovisual e o que está por trás desse puritanismo hipócrita nas novelas-séries-filmes quando o assunto é prazer-sexo-nudez.

A estética da violência é um fetiche cinematográfico lucrativo explorado à exaustão pela indústria e, espantosamente, mais aceitável aos olhos do público. O gozo ainda choca. É menos agressivo e constrangedor um corpo alvejado de bala, o sangue jorrando na tela, espadas cravadas na carne.

“O que eu vou dizer aos meus filhos?”.

É a vida. Morrer é parte indissociável dela. É como se a violência já fizesse parte do nosso cotidiano, fosse algo normal que já estamos acostumados a conviver todos os dias nos noticiários da TV, nas páginas dos jornais, nas redes sociais. Nesta última, fazem questão de viralizar no grupo da família.

O banquete da dor e da brutalidade quando compartilhado fica mais saboroso. Sedentos selvagens que somos.

 Ah, as famílias. O seio familiar. Com a tarjinha preta nos mamilos pra não chocar ninguém e pra não ter censura do instagram. É dentro de casa onde nossas mãos são conduzidas a não pegarem determinados assuntos. Desde pequeno somos educados e aprendemos a lidar (ou simplesmente a não lidar e até mesmo a esquecer que temos um corpo e que ele é extenso em possibilidades e sensações) com o corpo, com o nu, com o prazer que dois ou mais corpos proporcionam para todes os envolvidos no amor, no sexo, na trepada, na foda, na suruba.

O nome é o que menos importa quando o prazer está em jogo. Quantas palavras deixamos de falar no dia a dia? Quantas palavras substituímos por uma expressão mais amena, menos ofensiva? Quantas palavras emudecem as pessoas do outro lado do sofá? “O que eu vou dizer aos meus filhos?” So-cegue! É tudo culpa da cegonha.  

E esse puritanismo barato cresce com a gente, se ramifica em outros espaços, infertiliza nosso olhar e castra nossa relação sensorial com o corpo do outro e, principalmente, com nossa própria morada. Essa redoma comportamental semeada pela negação carnal e inviolada pela culpa faz com que vejamos o sexo e todas as camadas que o compõem com maus olhos e critiquemos quem o faz com liberdade, quem o fala sem pudor, que o consome sem se esconder.

Só existe demanda porque há consumo.

 Assistir a versão brasileira de “Hard”, série da HBOMax, trouxe à tona toda essa reflexão acerca desse tema tão gostoso, praticado por todos e silenciado por muitos que é o SEXO.

É como transar com a tecla mute ativada. Tem quem goste, mas transar desprendido de todo e qualquer pudor verbal ou sonoro e aberto a todas as possibilidades de prazer é uma experiência transcendental. 

 A série escrita por Juliana Rosenthal, Patricia Leme, Mariana Zatz e Laura Villar mostra a indústria da pornografia por dentro e desnuda todas as contradições humanas de forma bem-humorada. Um dos grandes méritos da série está justamente nessa gênese feminina que permeia a sua criação desde a sala de roteiro até a execução de cada episódio.

Uma equipe formada por quatro roteiristas mulheres quebra o muro de castidade construído historicamente entre a mulher e a prática sexual. As mulheres, antes tratadas apenas como veículo do prazer masculino, hoje sentem seu próprio prazer, e na trama da série, proporcionam criativamente o regozijo alheio sem pudores ao estarem no comando de uma produtora pornô.

 

Hard

Hard

Sofia, a protagonista vivida com maestria por Natália Lage, representa todo conservadorismo entranhado nas famílias brasileiras. Uma pacata mulher do lar, casada, com dois filhos, que com a morte do marido herda uma produtora de conteúdo pornô (a SofiX). O castelo de cartas desmorona e ela se vê num conflito de valores que a coloca diante seus desejos e sentimentos mais íntimos. Não bastasse o choque de saber que o finado marido trabalhava na indústria no sexo, Sofia se vê num mundo completamente diferente do qual estava habituada e se apaixona pelo astrô pornô da produtora cujo pau avantajado, responsável pela fama e pelo nome (Marcelo Mastroduro), é o protótipo de um consolo de borracha com sua assinatura.   

 A Sofia-mulher amadurece à medida em que se liberta de antigos preconceitos, conhece as pessoas que fazem a cena pornô por trás dos gemidos e das fantasias, e quando decide encarar seus próprios conflitos ao se permitir viver experiências até então inimagináveis e condenáveis pela sua régua moral, mudando a relação com os filhos, com os pais e, principalmente, com ela mesma. .    

Numa sociedade conservadora, machista e misógina como a nossa, ver uma série sobre a indústria do sexo com mulheres falando de sexo, protagonistas do próprio prazer, capitaneando a produção de contéudos eróticos num ramo marjoritariamente masculino é de uma potência e de uma ruptura social transformadora.

Entre essas mulheres se destacam “Margot” (interpretada por uma à vontade e sempre excelente Denise Del Vecchio), uma mulher madura, dona de si que mostra que sexo não tem idade. Enquanto houver libido e vontade haverá prazer e criatividade.

E “Lúcia” (na pele da camaleônica Martha Nowill) uma advogada fiel às suas vontades e desprendida de qualquer pudor moralista. O elenco, outro destaque da obra, reúne ótimos nomes como: Fernando Alves Pinto (numa construção de personagem debochada e impressionante), Júlio Machado (ótimo no conflito hamletiano de ser ou não ser um ator pornô), Brunna Martins, Carolina Ferraz, Marcelo Paganotti e a dupla Pedro Konop e Nathalia Falcão (muito bem como os filhos da Sofia).

O “não perder a mão” do Karim não quer dizer que o sexo deve ser filmado gratuitamente, por um viés apelativo ou sensacionalista, no oba-oba do vale tudo pela audiência. “Hard” dá uma aula nesse quesito. Nada soa aleatório, banal. Além da qualidade do texto (que poderia facilmente cair num raso mal gosto se mal escrito), a série é muito bem dirigida por Rodrigo Meirelles, Julia Jordão, Diego Martins e Luiza Campos.

As inúmeras cenas de sexo em todas as suas composições e variações possíveis ao longo dos episódios possuem um cuidado estético, uma plasticidade que explora o erotismo, o fetiche e a imaginação valorizando a obra sem vulgarizá-la.   

Numa sociedade onde o sublime ato da amamentação ainda gera desconforto para a mãe e mal estar para quem está ao redor, e demanda toda uma logística operacional (esconder o peito, quase sufocar o bebê com a fralda no rosto…) para que a criança recém nascida possa encontrar o leite materno, é difícil romper as amarras morais que castram o corpo, o prazer e a arte.

A experiência de ver “Hard” nos coloca cara a cara com nossas idiossincrasias menos ortodoxas e nos faz refletir sobre como podemos nos achar tão libertários, mentes abertas, à frente dos nossos pais e na próxima cena nos vermos julgar a liberdade alheia, criticar a nudez de alguém próximo (só a nudez do artista, do famoso, da celebridade é transgressora), controlar a exposição de um prazer que não é seu, mas que você mede (constrangide e chocade) pelas suas vivências, pelos seus traumas, pelos seus fantasmas mais carnais. 

 Felipe Ferreira

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