Isso não é uma tempestade

A tempestade. Edvard Munch, 1893

A tempestade. Edvard Munch, 1893

Eu não me sinto bem quando eu estou andando por aí, ou olho pela janela e vejo o dia ficando completamente nublado, a ponto de parecer que está anoitecendo mais cedo. As vezes não são nem quatro horas da tarde. Mas é triste para mim, que fico meio borocoxô quando o clima fica nublado e dá uma sensação de que vai tudo desabar. Nunca fui grande fã de dias ensolarados e quentes, mas ainda menos gosto daqueles em que tudo fica cinza e parece que a qualquer momento os céus vão chorar por causa da nossa tragédia humana e que vamos andar pelo vale da sombra da morte se continuarmos na rua. Talvez eu seja exagerado mesmo. Deve ser pior porque geralmente a minha visão é a de um sem fim de prédios que já são cinzas e sujos, e a falta de sol os deixa ainda mais sem vida. 

E então meio de repente, meio que esperado, a água começa a cair. E ela vai vindo cada vez com mais força, até que se torna impossível ignorar e a sensação que vem em seguida é a de que tudo vai acabar mesmo. E eu olho pela janela e o dia virou noite de uma hora para a outra. E ainda tem esse barulho metálico que parece que não vai mais parar, o que me deixa ainda mais triste ainda. Mas a chuva é boa, tava precisando, o tempo tava seco. Mas tinha que chover onde precisa. Todo ano é a mesma coisa e logo começam as enchentes. Posso ouvir as pessoas dizendo dentro do elevador ou em algum táxi qualquer. 

Daí mesmo que eu pare de encarar a chuva, mas só de ouvir ela caindo, a impressão que dá é de se estar preso naquele momento, como quando algo no fundo na nossa cabeça parece dizer, o tempo todo, que alguma coisa está errada. E por mais que eu pudesse tentar voltar ao trabalho depois de olhar o céu desabando, fica esse alarme soando de que tudo está acabando mesmo. E nem adianta tentar disfarçar colocando uma música no fone de ouvido ou qualquer coisa que o valha. A água toma conta de tudo e, no fim, a prisão é de verdade, já que não faz sentido querer enfrentar a rua nesse momento. O charme do banho de chuva não existe na cidade e por aqui sair numa tempestade dessas é ser agredido por gotas fortes que também são cinzas. 

Ansiedade: Edvard Munch, 1894

Ansiedade: Edvard Munch, 1894

Ansiedade: Edvard Munch, 1894

Eu não sei se é o mundo que para ou se a gente mesmo que se sente impedido de fazer qualquer coisa. A gente ou o problema é comigo mesmo? Porque eu não tô falando de uma garoa, de uma ventania molhada qualquer. Eu tô falando daquelas tempestades que parecem que a água bate no chão e sobe de volta. Que o comércio tem que baixar a porta pra água não invadir o estabelecimento, num lugar que nem enchente dá. Chuvão mesmo. Que a gente fica com medo de ficar embaixo da marquise, porque parece que ela vai cair também. Pelo jeito amanhã vai ter notícia de árvore que caiu, e o jornal vai ter que fazer todo o inventário da tragédia. Todo ano é a mesma coisa

E não importa o que se faça nesse tempo, a chuva tá caindo na nossa cabeça. Tá caindo dentro dela não importa onde a gente esteja. Ela não deixa esquecer que tá lá. O barulho não para. Não dá pra tomar nenhuma decisão. Não tem como não ficar com medo. Por isso ela me deixa triste. Eu não posso sair daqui. Eu fico com medo e o coração acelera. Será que vai acontecer alguma coisa? Será que já era? É assim que a vida acaba? Será que ninguém mais tá percebendo, que tá tudo escuro e essa água não para de cair. Que o estrago vai ser enorme. Que eu não posso sair daqui. Que eu não tenho como ir pra lugar nenhum. 

Só me resta ficar aqui, esperando a chuva passar. Mas ela não parece nem diminuir um pouquinho. Será que vale a pena arriscar e abrir a porta. Tentar por o pé na rua e ver como estão as coisas. Ou é melhor ficar aqui quieto e protegido. Até parece que eu já tô me acostumando com tudo isso. Tá tudo escuro faz um tempo e esse barulho não para mesmo. Deve ser melhor se acostumar com ele. Mas será que é possível? Eu deveria me acostumar com o medo e o coração acelerado? Não tem outra saída? O segredo deve ser tentar ignorar a tempestade. Ou seria melhor tentar encontrar algo de positivo nela? Tentar olhar pra ela, como se fosse possível dar as boas-vindas. Mas é tão cinza, tão forte que dá medo de colocar a mão pra fora. Como se eu fosse ser arrastado por uma correnteza simplesmente por encostar na água. E a cada trovada eu tremo. De novo. E até a visão fica até embaçada e parece que alguma coisa me tira do corpo. Parece tudo uma ilusão. Que eu saí do meu corpo como se eu tivesse descoberto a Matrix. É o Juízo final.

Minha vontade é sair correndo daqui. Mas não vai dar, tá todo mundo vivendo tão tranquilo, como se nada tivesse acontecendo. Como se só eu estivesse vendo isso tudo. Como se eu estivesse ficando louco. Ou eu vou morrer de verdade. Eu queria andar de um lado para o outro, mas aqui não tem espaço pra isso. E eu não quero parecer que tô ficando louco. Queria que o tempo passasse. Que isso acabasse logo. Podia ter alguém pra conversar comigo, mas tenho medo que não entenda que está tudo acabando mesmo e que o céu está desmoronando. Eu queria um chocolate. Eu não devia ter tomado aquele café. Eu tremo de novo. Será que vai aparecer alguém e dizer que é tudo uma ilusão. Morpheus. Pílula azul, pílula vermelha. Eu vi o filme. Deve ser verdade. Ou eu tô ficando louco mesmo. Tremo. Será que vai passar? Ou já era? Vou tentar ler aquele anúncio. Se eu conseguir ler é porque eu estou normal. Vou me concentrar no que ele diz. Em cada palavra. Em cada parte do desenho. Vou tentar olhar pra ele e fingir que nada mais tá acontecendo. V.E.N.D.E.-.S.E. Placa Amarela. Nome de imobiliária que deve ser o sobrenome de alguém. O logo deve ter sido feito pelo filho de alguém. Telefone fixo. Eu tremo de novo. A placa tá meio torta. Eu tremo de novo. Não adianta tentar ignorar. Estou ficando cansado. Mas eu ainda queria andar de um lado para o outro. Foda-se. Eu tô ficando louco mesmo. Vou andar em círculos. É assim que a vida acaba. A vida social pelo menos. Mas eu já tô cansado. Parece que eu fiz exercício. O coração está disparado. Estou ficando esgotado de verdade. Mas eu ainda tô vivo. E o tempo não tá passando. E tudo continua igual. Vou tentar respirar mais devagar. Vou tentar fazer isso enquanto a chuva não passa. Nem lembrava mais que estava chovendo.

Eu nem lembrava mais que estava chovendo.

Eu nem lembrava mais que estava chovendo. 

Eu nem lembrava mais que estava chovendo. 

Eu nem lembrava mais que estava chovendo. 

Respiro mais devagar. Eu tinha esquecido que estava chovendo. Mais fundo. A água nem parece tão forte assim. Puxo mais ar. É bom. Acho que tá tudo voltando ao normal. Talvez não tenha sido tão forte assim e não sei nem se vai passar alguma coisa no jornal. Pelo jeito todas as árvores continuam aqui e não aconteceu nenhuma tragédia. O céu está ficando menos cinza e o dia está nascendo de novo no meio da tarde. Ainda não são quatro horas. O Sol há de brilhar mais uma vez. Acho que já dá pra sair daqui e ir andando com calma. Eu olho para os lados e está todo mundo cuidando da própria vida, algumas pessoas andam em grupos, outras parecem mais sérias e apressadas. Será que elas viram a chuva também? Eu vou sair daqui andando devagar. Vou procurar algum lugar pra tentar comer alguma coisa, talvez aquele chocolate. Eu mereço. 

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PS: O texto descreve uma crise de ansiedade. Se você já passou por isso, ou está passando, não sofra sozinha (o). Procure a ajuda de alguém. Há sim gente pra conversar com você. E você não está ficando louco. Tudo vai ficar bem. 

O sol, Edvard Munch, 1911

O sol, Edvard Munch, 1911