Legítima defesa da honra?

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Na semana internacional da mulher o que temos para comemorar?

Não quero usar de meu espaço aqui nesse Blog para romantizar o 08 de março e nem para falar de flores. Enquanto uma de nós estiver sofrendo, todas precisamos gritar!

E um fato bem noticiado nos últimos dias é sobre o que queria escrever um pouco: a tese da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio.

Antes de qualquer coisa, para que todo mundo tenha uma referência sobre o feminicídio, os graves índices, o processo de criminalização dessa conduta, eu faço referência ao primeiro artigo que escrevi aqui no blog em 2019.

Feita essa introdução e com a leitura em dia, vamos ao tema do texto de hoje.

 

O famoso crime passional

As mulheres vítimas de violência doméstica e principalmente de feminicídio tem historicamente sua “reputação” e “comportamento” questionados pelas defesas de seus agressores para justificar os atos criminosos.

Angela Diniz, em 1975, foi assassinada por seu companheiro, Doca Street, após uma discussão por ciúmes. À época ele confessou o crime e justificou o ato dizendo que a matou por amor – mais do que isso, que a matou para proteger a própria honra.

Até hoje homens que matam mulheres (suas esposas, namoradas e ex) utilizam desse mesmo argumento, e os seus advogados invocam a tese da legítima defesa da honra para absolve-los ou para reduzir suas penas.

Em um recente processo julgado em Minas Gerais, após a tentativa de feminicídio de Wagner Rosário Modesto contra sua ex esposa, os seus advogados invocaram a tese da legítima defesa da honra, alegando que a

“ex esposa provocou no réu ira, situação muito perigosa para qualquer macho quando ama sua fêmea

– ele foi absolvido pelo Júri!

Destaco aqui as expressões da defesa: macho e fêmea... isso diz muito sobre o que estamos falando!

Isso me dói, isso me causa nojo...

Mas o que é essa tal tese de “legítima defesa da honra”?

A Legítima Defesa é o que chamamos em Direito Penal de “causa excludente de ilicitude”.... entramos no campo jurídico, mas eu prometo que vou tentar traduzir e suavizar o juridiquês...

A grosso modo a legítima defesa acontece quando estamos em uma situação que algum direito possa estar em perigo (ex: nossa vida, nossa propriedade, nossa liberdade sexual), e por isso nós estamos “autorizados” a nos proteger, sabendo que o Estado (polícia) não está a nossa disposição o tempo todo para cumprir com essa função.

Então para invocar a “legítima defesa” algum direito deve estar em risco.

O que acontece na tese que estamos tratando é exatamente isso: o homem ao ver a sua honra atingida (por uma suposta traição, por ciúmes, por não aceitar o término do relacionamento, etc...) tira a vida da sua atual ou ex companheira.

Acontece que um dos requisitos para a legítima defesa é que ela seja proporcional. Ou seja, que a agressão e a defesa dessa agressão tenham um peso jurídico relativamente equivalente.

Então a gente se pergunta.... mas a honra pode ser considerada mais valiosa ou tão valiosa quanto a vida? Como é possível emplacar uma tese como essa?

São diversas as circunstâncias que resultam nesses julgamentos, mas eu queria destacar o ambiente em que isso acontece.

Ao falar de crime contra a vida (ex: homicídio, feminicídio), os processos para apurar e responsabilizar os agressores são conduzidos pelo Tribunal do Júri.

Sabe aquelas audiências que vemos em filmes e novelas, onde os advogados atuam em verdadeiros espetáculos para convencer os jurados a condenar ou absolver o Réu? Isso no Brasil só existe nos “crimes contra a vida” – que é o caso do feminicídio!

Isso quer dizer que os processos em que figuram como vítimas as mulheres que foram assassinadas (ou quase) por seus companheiros são sempre decididos pelo Júri – que é composto por pessoas comuns, leigas, sem conhecimento técnico jurídico.

Isso não é algo negativo de uma forma geral! É importante termos pessoas comuns “julgando” outras pessoas comuns. Acontece que esse Júri é composto por pessoas comuns que podem decidir por emoção, por comoção e com base nos padrões misóginos que regem a sociedade.

Assim, se a defesa levanta uma tese vitimizando o agressor, o colocando neste lugar de vítima de uma mulher indigna e não fiel, é bem possível que outros homens deste Júri concordem com essa narrativa!

Além disso, o Júri e sua decisão são “soberanos” e dificilmente a sua decisão é modificada quando os recursos chegam aos tribunais superiores.

O problema está então na tese em si... no argumento em si... se os defensores utilizam da tese de legítima defesa da honra para proteger seus clientes, com razão o Júri pode adota-la para absolver ou reduzir a pena dos Acusados.

Isso quer dizer que, mesmo que não esteja de acordo com o melhor entendimento jurídico e técnico, isso não importa – o que importa é que os jurados sejam convencidos pelos defensores dos feminicidas!

A gente pode perceber que a sociedade machista e esses Júris, formados frequentemente por homens, mantiveram o sucesso da tese da legítima defesa da honra, absolvendo muitos acusados de feminicídio, ou diminuindo significativamente a sua pena.

O sistema de justiça está aí para perpetuar as desigualdades...

Estamos então falando de violência de gênero(!), essa que já é vivida na sociedade de uma forma geral, e passa a ser refletida institucionalmente nas instâncias de poder, com a perpetuação da misoginia como um todo.

O sistema de justiça, sobretudo o criminal, é historicamente seletivo, e não estamos falando apenas no que diz respeito a quem está sentado no banco dos réus (sua cor, classe social, identidade), mas também sobre a vítima quando ela é mulher, que será severamente confrontada, exposta, julgada, e sua palavra (quando ela ainda puder se expressar) será questionada até o final.

Neste sentido, os tradicionais padrões e papéis de gênero serão colocados no papel e é através da percepção desse comportamento que os julgadores chegarão às suas convicções e decisões.

Assim, as mulheres e meninas que performam a glorificada “bela, recatada e do lar” terão mais chances de ser lidas como verdadeiras vítimas, enquanto que as mulheres e meninas vistas como “saidinhas”, “rebeldes”, “não comportadas” são severamente julgadas, não acolhidas e culpabilizadas.

Com isso, o sistema de justiça, seja através dos Juízes concursados, seja através do Júri, segue cumprindo o seu papel na perpetuação das desigualdades sociais e manutenção do status quo.

A tese é inconstitucional!

Para estancar esse tipo de tentativa de “livrar” os feminicidas de sua responsabilização criminal, juristas ingressaram com uma ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental), que é um processo que tem como objetivo questionar o STF sobre a constitucionalidade ou não de atos ou decisões.

Aqui o que se questiona é a própria tese em si – se ela pode ser utilizada como argumento de defesa, e se ela pode ser usada para absolver ou diminuir a pena dos feminicidas.

O julgamento do STF já iniciou, e por enquanto temos o entendimento de ser essa tese inconstitucional, seja porque ela representa um recurso desumano, odioso e cruel, seja porque ela é pautada por ranços machistas e patriarcais que fomentam ciclo de violência de gênero na sociedade!

São argumentos que decorrem da cultura machista onde nós mulheres somos ainda vistas como “coisa”, propriedade e submissas aos homens e suas vontades.

É revoltante pensar que para muitos a honra de um homem seja um bem superior à vida de uma mulher.

É revoltante pensar que continuamos sendo colocadas no mesmo lugar que estivemos no passado – no lugar de “coisa”.

No Brasil, 1 mulher é vítima de feminicídio por seu companheiro ou ex a cada 2 minutos...

Ainda não temos o que comemorar!

Quem ama não agride, quem ama não assedia, quem ama não mata!

Fernanda Darcie

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