Nó na garganta

Girl power

Girl power

Uma das coisas mais difíceis para o sujeito negro é lidar com a transferência de culpa e responsabilidade em casos (mesmo que claro) de racismo. Isso se dá pelo fato do racismo ter a capacidade de transformar a vítima em vilão.

Dia desses uma mãe recebeu um email confirmando a participação do filho num teste para um seriado infantil. Estava muito empolgada pelo fato de ser para um personagem que o filho acompanhava desde pequeno.
Então, que legal seria para ele se passasse no teste para interpretar a história que acompanhava pela tv. Mas qual não foi a surpresa da mãe quando, ao ler o texto para o teste, percebeu em seu conteúdo um contexto extremamente danoso para um menino negro visto que tinham expressões que se referiam ao personagem como sujo, fedido, e outras coisas mais no superlativo. E tudo isso dito por uma pessoa branca.

Por mais que o personagem reagisse dizendo o quanto a personagem branca era louca e sem noção, tais ofensas proferidas a uma criança negra que carrega em sua pele um signo associado a tantas referências negativas como “mercado negro”, “a ovelha negra da família”, “o lado negro da força”, “preto quando não caga na entrada caga na saída”; um signo que é associado a sujeira, a negatividade, não seria o suficiente para que essa criança se colocasse acima de tais ofensas. Imune a elas. Não mesmo! 

No entanto, quando apontado o problema para os responsáveis pelo teste, a resposta foi claramente: retaliação. Através de uma desculpa esfarrapada que insulta a inteligência de qualquer um e que, no mínimo esconde uma faceta muito cruel do racista que é de se esconder atrás de uma pseudo generosidade. Foi dito que o perfil do menino já tinha sido escolhido a muitos meses, que o teste atual seria feito só com meninos brancos, consequentemente o texto era para eles, e que só fariam o teste com seu filho nesta oportunidade para ter o material já guardado para possíveis possibilidades futuras.

Mas, que diante do problema apresentado cancelariam com ele e fariam numa outra oportunidade. Entenderam? O subtexto desta fala diz que “quisemos te fazer um favor, mas diante de sua ingratidão, cancelamos! ” Eles invertem o jogo para fazer a mãe negra se sentir ingrata e equivocada quando aponta a situação preconceituosa. 

Se tal desculpa fosse verdade, deveria ter sido dito á mãe negra assim que receberam o material com foto do menino e deixado claro que o teste seria para possibilidades futuras. Até para essa mãe decidir se queria fazer ou não o teste nesse momento. Sem contar que, não esclarecendo esse fato, eles possibilitam a criação de expectativa desnecessária para a criança.

Mas tudo isso é colocado como responsabilidade da mãe porque não teria entendido o que, na real, não foi informado. E mesmo que todas as questões apontadas por essa produção fossem verdadeiras, ainda assim estariam errados porque enviaram um texto extremamente inadequado para ser dito por uma criança negra. Mesmo que fosse apenas uma no meio de vários meninos brancos. Mas tudo isso é colocado como um equívoco DA MÃE, visto que a "generosidade branca" só queria dar uma oportunidade.

O mecanismo de opressão, consciente ou não é tão eficiente que responsabiliza e culpabiliza o negro pelo racismo. E o negro, por alguns instantes, até aceita a culpa. E se envergonha, para no instante seguinte levantar a cabeça e seguir adiante mesmo com um enorme nó na garganta. E eu me pergunto: Até quando? 

Até quando os negros serão responsáveis pelo equívoco do branco? Até quando seremos considerados ingratos diante de p*#*# nenhuma? Até quando seremos culpados pelo chicote que estala em nossas costas? Até quando seremos tratados como burros ou complexados ou encrenqueiro quando apenas dizemos NÃO? Até quando?

Eu não sei a resposta para essa pergunta, mas uma coisa é certa: até lá, continuaremos gritando bem alto: NÃO!

Tati Tiburcio

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