Negro Rei: uma análise mulherista dos Homens Negros em Black is King

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“You are the living word” - Beyoncé

 - “você é a palavra viva” (Tradução livre)

Palavras iniciais: pedindo passagem aos homens negros e o agô dos meus ancestrais

Dando continuidade às análises de “Black is King” que comecei na semana passada com o texto “Black is king: uma análise afrorreferenciada do novo álbum visual da Beyoncé” publicado na minha coluna no site Rio Encena e com a minha participação no podcast “Na potência” com Verônica Orquídea, vou discutir a presença dos homens negros na obra, pois a diva Bey, além de dedicar o filme ao seu filho Sir Carter, abre uma série de discussões sobre o poder masculino e a necessidade destes homens recuperarem a sua realeza.

Homens negros são atravessados pelas amarras do racismo e do patriarcado ocidental que violentam a sua humanidade, descentralizam seu eixo civilizatório e lhes impõem uma performance de masculinidade rompedora com sua autoconsciência e os laços com os seus, ao mesmo tempo em que os expõem ao monstro do genocídio do povo negro.

Há ao menos três perspectivas de leitura para esse monstro e seus tentáculos na realidade masculina afro-brasileira:

(i) a morte física e subjetiva dos homens cis negros de 13 a 29 anos, conforme mostram dados do Mapa da Violência;

(ii) a morte física e subjetiva de homens trans negros, violentados, silenciados e destituídos de sua humanidade e lugar de pertença nas discussões dentro e fora das comunidades negras; e,

(iii) mulheres trans negras, cujas mortes no cenário nacional possuem maior requinte de crueldade, e também são atravessadas pelo tentáculo da misoginia ocidental que não aceita a possibilidade de uma pessoa biologicamente nascida no que se entende como papel social de “homem negro” negar a masculinidade ocidental imposta pelo pensamento judaico-cristão para se compreender em totalidade e potência solar enquanto uma mulher trans.

Apesar da urgência desse debate, eu não me sinto em condições de levar uma discussão legítima pela perspectiva trans, mas deixo aí a provocação e o convite para a produção de material sobre isso.

O foco deste artigo, portanto, é provocar discussão criativa sobre a mensagem que Beyoncé, no caso a eu-lírico que conduz da obra, quer transmitir em relação aos homens negros cis. Para tal, localizo-a a partir do matriarcado africana, não apenas pelo lugar legítimo desta mãe de três crianças negras, mas sobretudo, pela iconografia e referência que a própria introduz no filme.

De Isis Lactante/Auset e Heru à Maria da renascença, passando pelas deidades cosmológicas de múltiplas culturas africanas e afrodiaspóricas como Oshum, Oya, Yemanjá, Hathor Mami Wata, o recado para os homens negros é nítido como a água dos versos que introduzem a performance de “Water”: (tradução livre) “Muitas vezes a são as mulheres que nos recompõem. Muito de minha masculinidade veio das mulheres. Os homens me ensinaram algo, mas as mulheres ensinaram muito mais”. Assim, vem de Beyoncé, uma mulher-mãe negra, o chamado para a responsabilidade do homem negro consigo e com o seu povo.

Uma obra dessa grandeza e complexidade faz, no entanto, qualquer esforço de dar conta dela plenamente uma ação pretensiosa demais e igualmente extensa. O risco da perda efetiva da comunicação e um texto muito confuso fazem com que eu adote um procedimento metodológico para analisá-la, aqui, por meio de alguns conceitos. Por honestidade intelectual e como forma de situar os leitores, rapidamente falarei deles e, posteriormente, farei com que apareçam em partes do texto para demonstrar sua unidade analítica.

O primeiro deles é de "obra aberta",

título do reconhecido semiólogo e lingüista italiano Umberto Eco que foi publicado em 1962. Eco organiza uma série de ensaios no livro para atender a uma inquietação acerca da interpretação da arte contemporânea. Nesse sentido, o aparato conceitual desempenha duas funções, bem entendido, a de dar conta da amplitude de sentidos da arte e também a de refletir sobre interpretações e recepções. Basicamente, mobilizar essa ideia é entender a polissemia artística que autores em artes organizam encadeada e sistematicamente para que diversos gatilhos de memórias individuais ou coletivas sejam disparados e uma multiplicidade de sentidos sejam observados. Multiplicidade, não infinidade.

Embora se reconheça, de fato, que uma obra, quando sai das mãos de seus autores ganhem espaços e sentidos múltiplos e sobre os quais seus produtores jamais terão o controle, esses sentidos não são infinitos, pois toda obra encerra em si contextos específicos que tanto habilitam pluri-sentidos quanto também os limitam. Para isso Eco dedica o texto “Interpretação e Superinterpretação”. A idéia é se lançar sobre a sede do sentido e da verdade da obra. Está no seu autor? No seu leitor? Ou tem fim em si mesma? Não importando as escolhas daqueles que tomam tais obras, seja ela qual for, o regime de verdade será transitório. Porém, neste texto, o objetivo é empenhar esforços no sentido de recuperar o mais próximo possível do original a intencionalidade de quem produziu Black is King como uma forma de proposta de intervenção social eficaz.

Outra ideia fundamental para este texto é o de "jornada do herói" ou "as mil faces de um herói",

bases para a produção d'O Rei Leão (e tantos outros filmes/animações) quanto para a "grade" narrativa de Black is King. Joseph Campbell, o autor, foi um antropólogo norte-americano que dedicou majoritariamente sua carreira ao estudo daquilo que a ciência moderna nomeia como mito (o erro está em vê-lo como diferente e dissociado da magia e da religião, mas isso é assunto para outro momento). Em 1949 é publicado o livro "O Herói de Mil Faces". Trata-se de uma obra com intencionalidade sistematicamente científica. 

A revisão factual de mitologias nas mais diversas culturas e nas representações imagéticas permite Campbell propor seu modelo descrito na obra mencionada. É uma espécie de aliado de Mircea Eliade no empenho da Escola de História das Religiões difusamente surgida na academia alemã nos princípios do século XX. Vertente frontalmente rival das concepções de uma Escola Mitológica derivada do racionalismo e cientificismo modernos que simplesmente "limparam" todo elemento mágico, mitológico e mítico que (i) não estava de acordo com a estrutura da cristandade; e, (ii) não estava a serviço da verificação da mesma ciência radicalmente cética da Europa Iluminista. 

Essa pequena observação que expõe um debate entre ideias, longe de parecer erudição como argumento de autoridade, faz-se decisivo, pois é na aplicação da ciência histórica para os estudos acadêmicos e sua perspectiva comparada é que permitirá que o modelo conceitual de Campbell tenha sua existência real.

Não menos importante, Christopher Vogler precisa ser mencionado. Nascido em 1949 (não! não se trata de narrativa ficcional por ser no mesmo ano de publicação da obra magna de Campbell). Trata-se de um roteirista atuante em Hollywood tendo também trabalhado para Fox Pictures e Warner Bros. Mas, sobretudo, por ter sido o criador de um conhecido memorando corporativo, uma espécie de guia mesmo, para escritores de cinema com o modelo de Campbell sistematizado: A Practical Guide to The Hero with a Thousand Faces que, mais tarde, 1998, deu origem ao livro The Writer's Journey: Mythic Structure for Writers ou “A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores”, em edição brasileira de 2006. Eis aí as bases para a composição da estrutura narrativa conferida à animação O Rei Leão e, ato contínuo, preservado em Black is King.

Ressalto ainda que a discussão sobre apropriação cultural que algumas manchetes têm levantado erroneamente, não considera o fato da legitimação política internacional da diáspora africana.

Desde 2013, a União Africana, organização continental que tem todos os países africanos como membros, legitimou a diáspora como a sexta região de África, a região externa. Essa é uma política internacional de perspectiva pan-africana, reconhecida por outras instituições internacionais como a ONU/UNESCO e a União Européia. Não à toa a bandeira americana aparece no filme nas cores do pan-africanismo, vermelho, preto e verde. Uma espécie de metáfora - com um quê imperialista típico da Indústria Cultural -, do reconhecimento de pertença dos afro-americanos à categoria política de Povo Preto Africano.

Acrescenta-se, ainda, o que o que chamo de “Espólio de Maafa”, isto é, o direito legítimo que as afrodiásporas têm de se apropriar dos fôlegos de Vida vindos do continente africano e fazer disso matéria de permanência e resistência. Nossos ancestrais africanos chegaram para o infortúnio na Amerikkka apenas com o corpo, a palavra e o conjunto ético e estético africano, e foram essas ferramentas civilizatórias que fizeram com que continuássemos firmes até hoje. Então, quando vamos a “Black is King”, entendemos que Beyoncé lança mão desse espólio numa espécie de ressignificação da travessia transatlântica. Uma possibilidade de recarrilamento da diáspora com os trilhos de África, como fala o psicólogo afrocêntrico Wade Nobles, para que possa haver um rompimento do Estado de Maafa (holocausto vivido pela população negra nos últimos 500 anos) e a reumanização desta população. Para mim, a performance de “Water” com o oceano traz essa percepção de transformação e ressignificação por meio da simbologia do mar, elemento tão poderoso no nosso percurso histórico e cultural.

Por meio do “Espólio de Maafa” também se compreende a construção polissêmica das afrodiásporas. Somos resultado do choque cultural de três mundos - ocidental, africano e originários da América -, justificando, desta forma, a presença de elementos cristãos na estética, cenário e composição de cenas. A referência direta a Moisés - criança posta em um cesto no rio Nilo - reforça o diálogo com a tradição judaico-cristã, ao mesmo tempo em que metaforiza a libertação do povo. Potente né?!

A mesma potência narrativa é visceralmente construída no álbum a partir de uma perspectiva civilizacional africana. Ou seja, os valores civilizatórios comunicados visual, estética, musical ou narrativamente não são os mesmos daqueles desenvolvidos pelo Ocidente branco. Como se verá mais à frente, à medida em que a análise for sendo realizada, esses valores recolocam o eixo de interpretação da obra em outras bases. Isso, talvez, explique o estranhamento causado a tantos que desconhecem ou não reconhecem a pluriversalidade como valor humano inegociável.

Mesmo que neste texto o foco seja questão masculina, não se pode compreender a análise que se segue sem a incontornável reflexão do mulherismo africana, uma vez que a autoria (ou corte final) é dado por uma mulher-mãe negra. Esse conceito é balizador e será articulado com a formação do caráter do rei.

Assim como localizamos Beyoncé na autoria, é pertinente também que eu me localize na crítica. Sou uma mulher cis negra da diáspora afro-brasileira, moradora do grande centro urbano do Hell de Janeiro; teorizo sobre mulherismo africana nas minhas pesquisas acadêmicas e sou mãe, esposa, filha, irmã, prima, sobrinha, cunhada e amiga de homens negros. As ideias aqui suscitadas, portanto, estão como fôlego reflexivo da nossa condição de pessoas negras a partir das provocações propostas por Umberto Eco quanto à sede dos sentidos de uma produção artística, isto é, por meio da busca pela reconstrução da intenção autoral, interpretando-a pela perspectiva de que, quando se produz alguma obra, seu(a) autor(a) não mais tem controle sobre uma única interpretação. Então, longe de ser taxativa, impositiva ou dona da verdade, trago nesse texto as provocações que Beyoncé/sujeito-lírico estende aos homens negros, para que sirva de elemento agregador para as suas próprias reflexões.

Como se faz um rei?

Não caberia aqui uma longa reflexão sobre as razões pelas quais a narrativa de “Black is King” tomou como ponto de partida "O Rei Leão". Bastam, apenas, duas constatações:

(i) a "onda" que Wakanda promoveu na autoestima e representatividade para toda uma comunidade continental e diaspórica de negros que se viu, de forma concreta, como agentes de protagonismo (não aquele condescendente); e,

(ii) a ambiência de "O Rei Leão", envolve plena integração e presença entre elementos constitutivos do paradigma civilizatório africano como um modelo conceitual, ou seja, elementos de natureza plenamente integrados e participantes na esfera humana (na animação da Disney, a fábula era suficiente para colocar as dimensões humanas em uma camada não evidente na tela), coletividade e apoio mútuo e a dimensão humana marcadamente permeada (e materializada!) por agentes metafísicos. Esse último aspecto arrepia qualquer cientista positivista, que bom!

A seguir, há a constatação de que Beyoncé, e os coletivos de pessoas que organizaram a obra, optaram por não romper com o encadeamento da narrativa d`O Rei Leão. O modelo apresentado é de outra maneira preenchido, mas a forma segue um trajeto bem delineado. Para efeitos deste texto, assume-se que os aspectos em volta da construção do Rei fazem-se protagonistas (sim, o patriarcado ainda é consolidado como forma de poder), no entanto, e isso já foi mencionado na abertura deste texto, o "corte final" quem dá é uma mulher - a protagonista de fato -, mas não sem dialogar com ideias mulheristas. Assim, passa-se a uma descrição analítica sobre como um rei africano e diaspórico se constrói - e sim, ele é abrangente, pois suas dimensões civilizatórias africanas não só não deixa ninguém de fora, como também viabilizam o entendimento de que essa realeza é constituída por uma coletividade de corpos e ideias, ao invés do Rei-divindade amplamente conhecido pelas monarquias predatórias e personalistas ocidentais.

Campbell, “n'O herói de mil faces”, apresenta um modelo. Basicamente, três atos, desdobrados em 12 passos. Do público ao privado, do particular ao geral e do físico ao metafísico, esse herói (no nosso caso, o Rei) completa um ciclo. Há uma aparente linha evolutiva nessa ideia, mas ela é facilmente rompida, por exemplo, em Black is King quando a sincronia continental é constantemente rompida pela diacronia da diáspora. Sincronia e diacronia em síntese. A síntese: um corpo coletivo do Rei.

O ATO I

  1. o mundo comum: a jornada do herói começa em seu mundo cotidiano e ele é apresentado em efemeridade;

  2. o chamado à aventura: a esperança ou chamado para o qual o herói é convocado lhe é apresentada. Há o reconhecimento de que sua vida é para mais além do cotidiano efêmero;

  3. a recusa do chamado: um processo de negação ou fuga revela valores e características do herói que precisarão de modificações;

  4. encontro com o mentor: sua guia/guardião deve ensinar, conscientizá-lo, apresentá-lo ao seu compromisso;

O ATO II

  1. A primeira travessia (limiar entre mundo comum e o novo mundo onde será provado): uma nova experiência será vivida a partir de outra realidade;

  2. Provas, aliados e inimigos: essas experiências separam definitivamente o herói de seu "primeiro" mundo; a inocência é substituída pela agência ativa;

  3. A aproximação da caverna secreta: o herói mergulha no mais profundo de suas emoções e virtudes/fraquezas; o momento é de enfrentamento e síntese;

  4. A provação: toda sorte de prazeres, dores, crises, angústias e fugas apresentadas compõem uma prova decisiva, somente sua superação o sustentará para adiante;

  5. A recompensa: o herói conheceu o mais alto cume e o mais profundo vale, mas prevaleceu;

O ATO III

  1. O caminho de volta (limiar entre o mundo da provação e aquele novo espaço onde se efetivará sua personalidade de herói forjada na provação): o herói se reconcilia com o seu mundo originário, a realidade dele e com ele é totalmente outra;

  2. A ressurreição: é a marca final de que esse herói, além de virtuoso e poderoso, é destemido; senhor dos dois mundos;

  3. O retorno com o elixir: o confronto final acontece com o antagonista que alterou seu mundo comum. O herói vence, trás a solução e restaura o estado originário, mas ele é outro e passará seu legado adiante.

O Rei Leão narra a jornada do herói e “Black is King” reforça que este herói é um homem negro da diáspora. 

A partir do modelo Campbell - Vogler, podemos perceber as etapas que conduzem o amadurecimento da personagem rumo ao heroísmo arquetípico. Simba é, portanto, a metáfora dos homens afro-americanos, que abandonaram a sua realeza diante dos desafios da sua jornada, mas que agora precisam voltar pra casa e retomar o seu lugar, para a restauração e equilíbrio de seu povo. 

A jornada do herói, dividida em três atos, aponta para: 

ATO I: diz respeito ao mundo comum e inocente em que o herói ainda ignora os problemas. Esse mundo é rompido por algum acontecimento e o herói recebe o chamado à aventura/responsabilidade, que ignora em prol de uma fuga existencial; 

ATO II: sobre o mundo especial que o herói adentra em sua fuga. Cheio de testes, provações e perigos, as experiências para sobreviver exigirão coragem, inteligência, força e autoconsciência.  Durante esse processo há o encontro com o mentor - pessoa sábia, afetiva e/ou espiritual - que lhe aponta o caminho pra casa por meio de reflexões filosóficas sobre o Ser e o nosso lugar na existência;

ATO III: o retorno do herói para a restauração de seu lugar em seu mundo. Mais maduro e experiente, trilha o caminho de volta, acerta as contas com o anti-herói, seu antagonista, passa pela ressurreição e restabelece a ordem, solucionando o problema e apontando para um fim de continuidade.

No álbum, podemos superficialmente, localizar a primeira parte da jornada do herói nas performances de “Bigger” (apresentação de Simba à comunidade pela cerimônias iniciáticas), “Find you back” (apresentação da linhagem deste herói, para fins de legitimação de seu lugar, relacionando-o à ancestralidade dogon por meio da máscara espiritual e do afrofuturismo), “Don’t jealous me” (primeiro contato com o sedutor mundo externo), “Scar” (primeiro contato com o seu antagonista, que culmina na morte do Rei Mufasa) e “Nile” (fechamento do primeiro ato da obra, encerramento do ciclo do Rei Mufasa e mote para a fuga existencial do herói).

O segundo ato é a ida do herói para o que Campbell chamou de “mundo especial”, introduzido pela performance de “Mood 4 Eva”. Perceba que na animação de 1994, neste momento, Simba entra no perfeito mundo da natureza, ao lado de seus companheiros Timão e Pumba, entretanto para estar ali, o leão precisou se deslocar de seu eixo existência (afinal ele é um feroz predador da savana) para se adequar a uma vida vegetariana e sem responsabilidades oriundo da fuga de si mesmo.

Em “Mood 4 Eva”, no entanto, a vida de “Hakuna Matata” selvagem africana, dá lugar ao ideal afro-americano de riqueza. Enquanto oriunda do coração da máquina ocidental, Beyoncé, enfia goela abaixo uma riqueza e ostentação recuperadora da realeza africana, com leopardos e "oncinhas", Mansa Musa e cheia de referências aos Impérios de Gana, Mali, Songai, Zimbabwe, Zulu, Asante e Kongo-Ngola. Tudo isso filmado na icônica mansão de Beverly Hills, símbolo do Poder do Capital, onde também rodaram “O poderoso chefão” e “O guarda-costas”, além de ter sido a sede da campanha do presidente Kennedy nos anos 60.

A potência desse gatilho cultural semiótico comunica, instantaneamente, a qualquer norte-americano mediano a reconhecer aquela casa, porque faz parte da cultura partilhada por eles, por isso, talvez a dificuldade da análise desta performance por parte da intelectualidade branca brasileira, que, com os seus filtros de branco latino americano que se quer ocidental, não conseguiu perceber a mensagem subversiva de Queen B para o nosso povo africano da diáspora. É muito poder!

O herói agora já é Jaz-Z, arquétipo de um homem negro que consciente da experiência do descarrilamento da diáspora, se reconhece enquanto pai e marido, empresário e membro responsável pela sua comunidade. É Jaz-Z quem incorpora Simba na cena de passagem do tempo. Num Rolls Royce de "oncinhas", símbolo da realeza africana,  em meio a estrada da savana - uma referência direta aos road movies americanos -, vemos um menino negro em fuga e negação de si, sendo guiado por um ancestral dogon de sua linhagem (só olhar a máscara!), dar lugar a um homem negro, poderoso, bonito e bem vestido sendo conduzido por um chofer. São vários gatilhos aqui!

Como a performance desta música precisa de um texto à parte que fugiria do foco deste artigo, me limito a dizer que aplaudi de pé a cena do casal Carter de mãos dadas em um corredor da mansão, à frente de um quadro de Beyoncé com os seus três filhos fazendo referência, tanto aos afrescos renascentistas (e à iconografia cristã bizantina, pois a mansão é resultado de uma arquitetura espanhola, portanto com fortes traços mouriscos na sua composição), como ao matriarcado africana que tem no culto kemético/egípcio de Ísis (Auset) um pilar basilar de sua origem.

É como se nos lembrasse que o matriarcado africana é uma das chaves para o restabelecimento da potência solar das nossas comunidades! Isso é, no mínimo, emancipador.

Além disso, cria-se o que o sociólogo  Michael Pollak chamou de “enquadramento de memória”: em uma cena, enquadrou-se harmonicamente uma série de gatilhos de memória ancestral que nos lembra que o matriarcado é valor civilizatório que possibilitou a nossa sobrevivência na desgraça coletiva da Amérikkka, e que homens e mulheres negros nesta perspectiva sempre andaram lado a lado. A referência para tal é um esquema imagético bem consolidado de um casal basilar do pensamento kemético, Auset e Ausar, cuja imagética ecoa no mundo greco-romano, judaico-cristão ocidental sob a alcunha de Ísis e Osíris (esse modelo imagético de mãe lactante com filho ao colo e pai ausente da representação é o mesmo tomado pela cristandade nas primeiras representações de Maria lactante com Jesus filho de Deus - ausente na imagem, a despeito de José...).

A jornada do herói negro, leão da savana babilônica ocidental continua. Com festas, curtição e mais fuga, acompanhamos a performance de “Ja Ara E”, que termina com o herói recebendo o chamado espiritual para seu recarrilamento. Atenção à cena em que uma entidade, muito parecida ao orixá Omolu, senhor das enfermidades e da cura, aparece sobre o carro, ao mesmo tempo que o rosto de seu companheiro de balada se transmuta numa memória de seu tio Scar, o anti-herói com o qual Simba precisa acertar as contas. Mais desenhado que isso, impossível!

Compõem também esse ato da jornada, as performances de “Already”, sobre a qual falarei na terceira e última parte deste artigo. Por ora, vale dizer que o chamado aos homens negros para que recuperem a sua realeza é explorado semioticamente por esta peça cinematográfica; “Water”, como já mencionada, utiliza o oceano como metáfora da tomada de autoconsciência do herói, apresentando o arquétipo da orixá marítima Iemanjá, “a senhora de todas as cabeças” e símbolo da psicologia africana. Aqui, vale lembrar também que algumas das tradições da diáspora atribuem o domínio dos mares a Olokun, senhor dos oceanos e ancestral de Iemanjá. 

O ato terceiro inicia com a performance de “Brown skin girl”, um afago carinhoso em todas as mulheres negras da diáspora que algum dia se viram atravessadas pelo sonhos da Disney (quem nunca?!). O que se tem ali não é uma sororidade do feminismo ocidental, mas sim a irmandade genuína que nos foi herdada ancestralmente pelo próprio culto do matriarcado africana.

Mulheres negras nunca foram inimigas umas das outras. 

Como o interlúdio supracitado da música “Water” anuncia: "homens aprendem mais com mulheres" (tradução livre). Assim, essa performance reafirma que:

(i) mulheres negras, princesas e rainhas, tal qual são constituídas e justamente por isso, têm o poder de ensinar; e,

(ii) esse é visivelmente um trecho autoral de Beyoncé, como uma espécie de assinatura da obra, que somente pode ser compreendido como resultado de toda construção conceitual de deslocamento de paradigma de eixo civilizatório Ocidente-África desenvolvida até este momento do álbum.

As alianças e solidariedade femininas negras, na verdade, foram um dos pilares que possibilitaram a nossa sobrevivência no caos da Maafa. O que seria de nós, mulheres negras sem outras mulheres negras para nos apoiar? Para com mulheres brancas, podemos até ter  a sororidade, mas entre nós, irmãs negras, que experienciamos o cárcere ocidental, e temos dentro de nossas famílias exemplos de mulheres que exemplificam essa irmandade africana, o que Beyoncé transmite acaba tendo outras camadas de profundidade. É tipo um, somos princesas de diferentes reinos, nossa realeza não é de disputa, mas sim de exaltação ao matriarcado africana que há em todas nós. 

A cena das mulheres no jardim é cheia de referências! Uma delas é a própria estética que dialoga com o filme de Sofia Coppola, “Maria Antonieta”, sobre história da rainha degolada na Revolução Francesa, símbolo da futilidade e alienação da monarquia ocidental. Coppola na obra faz uma leitura da personagem trazendo novas perspectivas, e Beyoncé em seu filme faz a releitura desta leitura, mostrando que luxo e realeza feminina negra têm fundamento nas filosofias africanas que reconhecem a linhagem uterina dos reis! As candaces, por exemplo, senhoras-mães dos reis etíopes, eram tão veneradas quanto seus filhos, afinal, mais importante que o rei, é o ventre da rainha que o pariu. Atenção para a figura do mordomo-conde drácula, pro pavão (arquétipo de beleza perfeita) e da matriarca do clã Knowles, sra Tina Knowles, sentada à cabeceira da mesa. 

A parte conclusiva (Ato três) da jornada do herói começa com “Keys to the kingdom” (o caráter do Rei já está construído e revelado! Hora da passagem), em que Simba, consciente de si, se conecta espiritualmente por meio do casamento com a princesa para dar início à um novo ciclo. Em “Otherside” voltamos à referência a Moisés como aquele que libertou seu povo. A cena, no entanto, não coloca Simba como a personagem que performa atos maravilhosos, mas concentra em sua mãe que, temerosa das ameaças de morte contra seu filho (havia uma ordem faraônica que primogênitos de hebreus fossem assassinados - genocídio da população negra masculina em flagrante paralelo!), o coloca em um cesto no rio e acompanha a travessia até que é resgatado pela filha do mesmo Faraó que intentava matá-lo. Uma espécie de ressurreição. A profecia é cumprida. O Faraó temia o que se cumpriu. A máquina de morte ocidental assimilou o recado.

O herói é coroado fisicamente e espiritualmente. E, fortalecido, vem para o embate final contra o anti-herói, etapa necessária para a conclusão das provações de sua jornada, em “My power”. Já “Spirit” traz a gratidão à ancestralidade unindo a tradição gospel afro-americana com o culto aos orixás. A cena de homens negros em ternos rosas ficando de pé e o nascimento do filho do Rei Simba traz a perspectiva de esperança, redenção e recomeço para os homens negros. O ciclo da vida é reconectado e esses homens negros convidados a integrá-lo. Há pelo menos três cenas de passagem nesse período do filme em que eles seguram bebês em gesto de proteção e cuidado. A informação é sedimentada e transmitida com doce sensibilidade.

Importante frisar que a jornada de Simba/homens negros tem como foco reforçar as quatro virtudes do rei (virtudes cardinais), cuja origem está na figura do rei Salomão da tradição judaico-cristã. São elas a sapiência/prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança/equilíbrio.Uma mensagem de que um verdadeiro rei se faz com autoconsciência, responsabilidade, retidão e respeito ao outro e à natureza, e, não, com um ímpeto dominador e destruidor. A base está por exemplo em éticas africanas, como a ética humanista ubuntu.

Homem Negro é Rei

Com intenção conclusiva e exemplificadora, parto da performance “Already” como material artístico que explicita semioticamente o diálogo que venho traçando ao longo deste texto. A ancestralidade costura a performance, desde os ancestrais azuis em sua morada nas árvores, passando por Beyoncé performando Oya Onira, “a senhora das borboletas” e do entardecer. O figurino em azul dialoga com os ancestrais, reforçando o arquétipo de Oya, compreendida na tradição iorubá de culto Egungun (culto à ancestralidade masculina), como a mãe dos ancestrais e protetora de todos os homens iniciados para esse culto, os Ojé e Omoixan; até chegar ao homem azul, ancestral de linhagem protetor de Simba, que o acompanha em toda a sua jornada. A performance em que Beyoncé e o ancestral dançam a mesma coreografia, com ela sempre atrás, traz a dimensão filosófica kemética do Sheut, isto é, o ancestral-sombra que compõe o nosso Ser.

Para mim, esse é o reconhecimento por parte da cantora e de sua obra da ancestralidade masculina que também construiu o nosso povo, em consonância com a discussão mulherista levantada por Cleonora Hudson e Nah Dove desde os anos 1980.

Nessa mesma música, a cantora também aparece como representação de Hathor, a deusa-vaca egípcia, filha dileta de Rá, considerada a mãe simbólica de todos os faraós comunicando, assim, os arquétipos maternais e celestiais em sua cosmologia. Essa deusa, segundo Nei Lopes, também é representada como uma leoa violenta que destroçava qualquer criatura viva que dela se aproximasse. Olha as metáforas aí.

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Acredito que “Already” metaforiza o recado para os homens negros também por conta das plurimasculinidades apresentadas no clipe. Cenas como a de Beyoncé rodeada por homens negros, em roda, à vontade, trocando rimas, quebra com a perspectiva ocidental de periculosidade destes quando em aglomeração (a estética gangster também contribui para esse imaginário). A cena é repetida, alternado o ancestral azul - agora lido ancestral simbólico de todos esses homens - e a Beyoncé/Oya Onira, servindo como um chamado espiritual pelo recarrilamento da jornada do herói, não mais de Simba, agora representando cada um dos homens negros em diáspora. Agora Simba/Homem negro são um e a jornada do herói pela recuperação de sua realeza é o “levanta e anda” semiótico que a Mama Beyoncé dá com esta obra. 

Na performance a bandeira de Gana é chacoalhada, assim como a bandeira pan-africana/americana. Discussões políticas podem ser refletidas daí. Por ora, me atenho ao contraste, com a cena dos homens negros com ternos azuis alinhados que pulam em referência direta aos guerreiros Massai. O tom azul royal metaforiza a recuperação dessa realeza. 

Enfim, são muitas as referências que também não se esgotam nesse texto. Entretanto, posso afirmar que a jornada do herói em “Black is king” é, sem dúvidas, a jornada do homem negro rumo ao seu renascimento cultural e ontológico. E esse renascimento vem também pelo pilar do matriarcado africana herança de Vida para as afrodiásporas.

Aza Njeri

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