Rangeu e mordeu

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“Os negros ainda sorriem, mas vão começar a ranger os dentes. O que é preciso é que eles queriam ser a nação brasileira”

Diante de tantas barbaridades que estamos vivendo, as palavras do mestre Milton Santos ecoam dentro de mim me lembrando de que sem conhecimento não há transformação. Sem uma mudança de pensamento e, consequentemente, de postura, não há uma busca verdadeira pela equidade. 

Essa semana veio a público dois casos gritantes de racismo: um do motoboy em Minas e o outro aqui no Rio de janeiro. Vou me ater ao caso de Minas.

As cenas do motoboy sofrendo uma tentativa de humilhação por parte de um homem, privilegiado pela sua condição racial e social, viralizaram nas redes sociais e muito se falou da atitude deste homem branco.

Mas eu não quero falar do racista, ignorante e covarde que se esconde atrás de um diagnóstico de esquizofrenia para abonar seus atos conscientes e perversos. Não! Eu quero falar do homem negro que disse basta!! Eu quero falar da atitude do motoboy. Porque ela me lembrou as palavras do professor Milton Santos. 

A todo momento durante o vídeo, o homem branco profere um discurso ensaiado e já carregado de preconceitos em relação àquele indivíduo negro a sua frente: já que ele é motoboy é semianalfabeto, não tem casa, e gostaria de ser branco. Ao que o motoboy rebate, não se defendendo, mas apontando para esse homem os furos de sua narrativa, revelando assim de forma irrefutável o preconceito de sua fala e mantendo na esfera do agressor o seu discurso preconceituoso. Não acatando através de uma autodefesa um estereótipo que não lhe define. 

Veja, não estou aqui fazendo uma apologia à resignação. Longe disso. Falo na verdade de saber quem se é e perceber quem é o outro. Vi um sujeito negro reagindo a uma agressão racista. Um sujeito negro menos pigmentado, é verdade, o que lhe confere mais confiança, pois sabemos que quanto mais clara a tez de sua pele e menos acentuados são seus traços negroides, menos preconceito você sofre, consequentemente, via de regra, maior será sua autoestima. Mas um homem negro, pois bem identificado pelo seu agressor que sabe muito bem quem não pertence ao seu universo de privilégio pigmentocrático. 

Vi um homem negro que com a altivez de quem diz: “Meu amigo, o racismo é seu! Você o criou! Ele te pertence! Eu não recebo a sua construção sobre mim!” deu um basta! 

Rangeu os dentes e mordeu porque entendeu que esse território também o pertence. Foi formado pelo nosso suor e trabalho. E ainda é assim! 

Como bem disse o advogado, Fabiano Machado em entrevista ao Fantástico deste domingo, “ o racista quer matar o outro (...) quer matar a dignidade, a autoestima, o orgulho”. Mas a tomada de consciência do sujeito negro, o acesso a educação através das universidades, o acesso ao conhecimento de sua história vem a décadas instrumentalizando esse sujeito e o munindo de discurso que se traduz em atitudes cada vez mais efetivas porque não mais acessíveis a um grupo de negros privilegiados culturalmente ou guetificados nas comunidades e periferias. 

O espelho que reflete as lutas de negros inconformados nesse país desde o princípio, vem se expandindo, ampliando cada vez mais o seu reflexo e enchendo de coragem e força consciente e instruída uma parcela da população negra até então apenas reativa e sobrevivente. 

A compreensão do discurso esta acessível a empregada doméstica, ao atendente de loja, ao camelô, ao porteiro, ao motoboy. 

A conduta do Matheus é admirável não por uma grandeza cristã de quem oferece a outra face. Coisa nenhuma. A grandeza de sua conduta esta no fato de que ele manteve a consciência, o auto controle porque sabe do seu valor. Sabe que é descendente de reis e rainhas. De um povo que foi o início da humanidade e não de escravos, mas de reis que foram covardemente escravizados. 

Quando ele diz: “eu posso ter a mesma coisa que o senhor” deixa muito clara a desconstrução do pensamento classista que esta impregnado na nossa sociedade. 

O Matheus negro sabe que tem o mesmo direito. O outro não é melhor do que ele pelo que tem ou onde chegou até porque, fica claro no vídeo que o outro é só um beneficiário de uma ascendência de usurpadores, que se beneficia do espolio garantido por uma tradição que respalda uma ideia de superioridade da qual o agressor se vale inclusive pela bíblia fazendo menção ao seu nome bíblico (que, pasmem, também é Matheus) e que esta presente nas escrituras sagradas. A qual ele, o Matheus branco, se refere batendo no peito como se tivesse o direito divino de ser (de se considerar) superior.

MATHEUS NEGRO - “Você conseguiu porque? Porque o seu pai te deu ou porque você trabalhou?”

No que o agressor responde “Eu já nasci bem” traduzindo: Eu é que sou um merda!!!

Tati Tiburcio

Instagram @tati_tiburcio