O melhor amigo do homem

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Muito se fala sobre a necessidade de equilíbrio ecológico para a manutenção da fauna e flora, bem como para minimização de riscos nos processos ecológicos essenciais. Dentro deste contexto de equilíbrio, temos processos dinâmicos de relação entre espécies que compartilham um mesmo ecossistema ou ecossistemas diferentes. 

Na escola aprendemos sobre muitas relações ecológicas entre populações, onde essas podem ser divididas em relações positivas, como por exemplo o mutualismo* e o comensalismo**; ou negativas, como o conhecido parasitismo***. Possivelmente, mesmo que você não seja da área de biológicas, você lembra de alguns desses conceitos ecológicos. Mas eu te pergunto: você já ouviu falar sobre esclavagismo? Palavra estranha, não? Mas posso dizer que esse conceito fala muito sobre o nosso comportamento (talvez estranho) de dominância sobre as outras espécies animais. 

ESCLAVAGISMO É UM TIPO DE RELAÇÃO EM QUE UM SER VIVO SE APROVEITA DO TRABALHO E OU DE PRODUTOS PRODUZIDOS POR OUTRO SER VIVO.”

 Agora está parecendo mais real né? Mais real porque durante toda a história da humanidade exercemos esse tipo de relação com várias outras espécies de animais. Quando tomamos leite de vaca, andamos a cavalo ou usamos um casaco de lã estamos nos aproveitando dos produtos e trabalho de outros animais. Bom, mas como isso tudo começou? A base para todo o entendimento histórico desta relação parte do conceito de domesticação dos animais.

A domesticação teve seu início há milhares de anos a partir da percepção da dominância do homem em relação as outras espécies, levando-o a crer que era possível manipular a natureza a sua volta. O homem então percebe que ao invés de caçar, ele poderia criar os animais e usá-los para inúmeros fins, dando origem a pecuária; assim como ao invés de somente colher o alimento, ele poderia plantar, tornando-se assim um agricultor. 

Os animais domesticados geram produtos, como leite, ovos, lã, seda, cera dentre outros; assim como permitem serviços de transporte, tração e segurança. Neste sentido, em um primeiro momento, temos a tendência de justificar o processo de domesticação como uma necessidade de sobrevivência da nossa espécie. Mas será que não perdemos o controle? Será que, ao envolvermos interesses econômicos, não exercemos de maneira descontrolada a seleção artificial? Hoje temos visto que as grandes plantações de monoculturas impactam negativamente no equilíbrio ecológico da área, provocando o desalojamento de vetores e reservatórios e, desta forma, a disseminação de doenças. 

Além disso a monocultura provoca um esgotamento do solo, sendo necessário a realização de rotação de cultura ou período sem plantação denominados vazios sanitários. No tocante a pecuária, recentemente as condutas executadas pela indústria de produtos de origem animal começaram a ser bastante questionadas. A criação, por exemplo, de frangos de corte, confinados e em um sistema de engorda continuado, ou o confinamento de bezerros restringindo os seus movimentos para a obtenção do famoso baby-beef, podem ser consideradas para parte da população como inadmissíveis.

Depois de ler, vivenciar e realizar uma autocrítica passei a pensar que a nossa relação com os animais domésticos sempre parte de uma necessidade individual da nossa espécie. E muitas vezes, no meu ponto de vista, essa necessidade não se trata de uma questão de sobrevivência. Vou dar um exemplo claro para a grande maioria da população e utilizando a perspectiva dos cães, considerados “o melhor amigo do homem”.

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Quando pensamos em cães domésticos, podemos subdividi-los em cães de guarda e companhia. Os cães de guarda normalmente são de médio e grande porte, e são utilizados na rotina para realizar a vigilância dos domicílios. Neste sentido raças como Pitbull, Doberman, Rottweiller, Fila Brasileiro e Pastor Alemão são mais utilizadas. Agora eu pergunto, quantos desses animais usam lacinho, sapatinho e roupinhas? Poucos ou nenhum, não é? Porque por mais que estabeleçamos uma relação emocional com estes animais, a função deles no nosso núcleo familiar é especificamente definida: a proteção da família. 

Entretanto, quando pensamos nos cães de companhia, normalmente de pequeno porte, temos a tendência de querer humanizá-los. Vocês já pararam para pensar no porquê fazemos isso? Talvez de maneira inconsciente podemos estar em busca de suprir algum tipo de frustração ou déficit emocional e individual e, nesta linha de raciocínio, temos muitas vezes a necessidade de tornar esses animais semelhantes a nós. Os cães de pequeno porte assumem o papel de companheiros e filhos. Nos sentimos confortados, uma vez que nesta relação não existe discussões, traição ou crises. O amor é incondicional. 

Entretanto, usar lacinho, que comumente eles tiram porque se sentem extremamente incomodados; vestir roupas, ato muitas vezes desnecessário já que a pelagem das raças nacionais garantem a manutenção da temperatura corporal para as condições climática locais; usar sapatinho, também é desnecessário já que o coxim dos cães são muito mais resistentes à abrasão e servem como amortecedores nas irregularidades do solo; passar perfume, que garante meia hora de espirro já que o olfato dos cães é muito mais apurado que o nosso; são prerrogativas/comportamentos nossos, humanos.

Todas essas decisões que tomamos acreditando ser o melhor para os animais, possivelmente partem de uma necessidade exclusivamente nossa. Nós queremos que eles estejam sempre cheirosos, mas seguindo a nossa linha de cheiro - porque para nós ser cheiroso não é ter “cheiro de cachorro” - e, assim, eles podem dormir na nossa cama quiçá usando o nosso travesseiro. Nós queremos que eles estejam sempre arrumadinhos, com lacinhos e roupinhas, para caso recebamos alguma visita. Nós planejamos inclusive festinhas de aniversário com direito a bolo, petiscos e cerveja para cachorro e para isso não consigo encontrar uma justificativa. Mas acho que nunca refletimos sobre os sinais que recebemos contrários aos comportamentos que achamos que eles devem possuir.

Na infância eu tinha uma cadela que todas as vezes que íamos a praia, ela sumia e voltada cheirando a carniça. Sempre fazíamos a repreensão e dávamos banho nela. Um dia, logo que entrei na faculdade de veterinária, participei de um evento de comportamento animal. Contei a história e o palestrante disse que esse tipo de comportamento era natural e inclusive muito inteligente. Isso porque quando ela identificava que estava em uma área nova, desconhecida, ela entendia que para sobreviver aos possíveis predadores locais era preciso camuflar o seu cheiro natural. E por isso que se esfregava na carniça. Durante anos não entendíamos esse comportamento e sempre a repreendemos, achando que ela era nojenta, mas na verdade, os insensíveis éramos nós. Essa incompreensão por nossa parte não é novidade, não é?

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E continuando na linha da nossa incompreensão, beirando muitas vezes o egoísmo, uma das coisas que mais me preocupa na atualidade, é a nossa constante necessidade de perpetuar o processo de domesticação. Hoje, não é incomum vermos pessoas que querem domesticar animais silvestres, como tartarugas, serpentes, lagartos, morcegos e primatas não humanos. “Porque eles são bonitinhos.” “Porque eu quero ser diferente e criar uma serpente.” “Porque eu amo as tartarugas e eu quero uma só pra mim.” “Porque eu sou bruxa e gosto de morcego.” Todas essas foram justificativas já ditas para mim. 

Será que a quantidade de espécies de animais domesticadas já não é suficiente? Além desta prática ser extremamente abusiva e desrespeitosa com os animais, ainda é responsável por expor as pessoas à inúmeras doenças. Grande parte dos mamíferos silvestres são considerados reservatórios de agentes etiológicos causadores de doenças. Raiva, leishmanioses, doença de Chagas, febre maculosa, hantavirose, histoplasmose, criptococose são exemplos de zoonoses que podem ter participação de animais silvestres em seu ciclo. Eu sempre falo para os alunos: amar os animais é acima de tudo respeitá-los. Respeitar o seu espaço. Respeitar o seu comportamento.

Então eu termino provocando a seguinte reflexão: será que temos o direito de interferir de forma tão profunda na vida de outras espécies de animais?

Rafaella Albuquerque e Silva

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* Mutualismo: caracterizado como sendo uma relação entre espécies em que ambas são beneficiadas, como por exemplo as abelhas que, ao obter néctar como fonte de água e carboidratos, transportam o pólen entre as flores e dispersam os genes das plantas. 

** Comensalismo: caracterizado pela relação entre espécies em que somente uma é beneficiada porém sem causar ônus para a outra espécie, como por exemplo a relação entre o tubarão e a rêmora.  

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*** Parasitismo: Relação entre duas espécies, na qual uma delas, o parasita, se beneficia da outra, o hospedeiro, causando-lhe danos de maior ou menor importância, mas raramente a morte. Ex: todas as doenças parasitárias, a saber: teníase, cisticercose, ancilostomose, ascaridíase, leishmaniose, doença de Chagas, malária dentre outras...