Para que serve o teatro?
Outro dia, um motorista de táxi que me levava para uma apresentação de “220 Cartas de Amor” no Sesc Madureira, bairro da zona norte do Rio de janeiro, me perguntou:
Você é ator profissional?
Pensei um pouco antes de responder, pois sempre me considerei um ator amador. Por amar muito o teatro e, também, por que poucas vezes meu sustento veio das artes cênicas, por mais que minha dedicação a elas seja de praticamente 24 horas por dia.
Sou.
Ah, eu sou líder de teatro.
Líder? Aquela palavra me soou estranha. Já ouvi diretor, encenador, preparador e, ultimamente, até “um espetáculo na visão de...”. Mas líder nunca tinha ouvido.
Líder?
Sim. Líder de teatro na igreja.
Ah...
Sou encarregado de liderar as peças da igreja para mostrar para drogados e viciados em geral, que Jesus é o único caminho.
...
Uma das discussões das quais participo desde que entrei em cena pela primeira vez, há 35 anos, é justamente para que serve o teatro. Muitas vezes dizemos que, como toda a obra de arte, não deveria servir à nada. O que serve para alguma coisa são os utensílios diários como: um martelo, uma panela, uma cadeira, ou os meios de transporte como: uma bicicleta, uma moto ou, como aquele que nos transportava: um táxi.
Um quadro serve, talvez, para deixar nossas vidas mais belas. Mesmo assim, minha noção de beleza pode ser tremendamente diferente da sua. Uma pintura que pode re-significar minha tristeza, para você pode, apenas, sugerir frases como: - Isto até meu filho faz melhor.
O mesmo podemos dizer de uma poesia. Para mim, e para minha Companhia de teatro, as poesias são nacos de humanidade imprescindíveis para uma existência que faça sentido. Mas, talvez, para a maioria de habitantes do planeta seja algo desconhecido e, quiçá, muitas vezes, inatingível. O que não impede, como já presenciamos inúmeras vezes, que pessoas que sempre acharam que poesia era algo para poucos, tenham ficado maravilhadas quando entraram em contato com versos de Drummond, Adélia Prado, Solano Trindade, Conceição Evaristo ou Fernando Pessoa. Mas essa já é uma outra história.
Essa história aqui ilustra minha perplexidade em perceber que estamos correndo o risco (ou já mergulhados nesse tempo) de retroceder ao período que, não por acaso, chamamos de período das trevas. Quando, entre outras barbaridades, a igreja (na época, a católica) usava o teatro para impor aos habitantes (o conceito grego de cidadania não valia então) seus dogmas, suas histórias, seus caminhos únicos para chegar à “salvação”.
Também tive o privilégio de trabalhar como sanitarista por mais de 20 anos na Fundação Oswaldo Cruz e pude entender que o que se chama de drogados ou viciados são pessoas que necessitam, antes de mais nada, de escuta para abandonar o uso de determinadas substâncias, caso queiram. Ou, caso não queiram, ajuda para reduzir os danos de sua relação com o que quer que seja que esteja lhe dando um prazer inexistente nas outras esferas da sua vida. Prazer que ignoramos e que nos apressamos em condenar. E a reduzir essas substâncias a algo também condenável, ignorando suas especificidades e chamando-as indiscriminadamente de drogas.
Mas, para não abrir mais tantos parênteses, o que interessa aqui é que o teatro que aponta caminhos únicos, deixa de ser teatro. Passa a ser uma doutrinação. Ou, em casos como esse, uma evangelização. Semelhante à violência que os jesuítas e outros religiosos impuseram aos indígenas e pessoas que foram escravizadas, num longo período mais-do-que-sombrio da história desse país.
O teatro “serve” para abrir mundos, apontar caminhos diversos, expandir mentes, corações e, por que não, almas. Uma pessoa que faz ou frequenta o teatro com regularidade entra em contato com dezenas de possibilidades de estar no mundo, de formas de agir, de visões do universo, de questões que nos fazem refletir sobre o que há de criativo e destrutivo em cada um de nós.
O teatro cria mundos de beleza e de feiura, de paz e violência, de desespero e esperança, para que nós possamos conviver com o fato de que, se há bem e mal, eles vivem dentro de cada um de nós (de todos nós!). E é dessa convivência, o mais harmônica possível, que resultará nossa capacidade de amar sem julgar. Amar, inclusive, aquele que usa drogas, sem querer impor-lhe uma crença. Pois são insondáveis os caminhos que levam alguém a beber, fumar, injetar ou tomar comprimidos. Sejam legalizadas ou não, o que chamamos de drogas pode ter usos os mais diversos. Inclusive alguns que se aproximam da cura e do sagrado.
Por isso, a única resposta que pude dar ao motorista de táxi foi o silêncio. O silêncio de quem observa uma nação que, perigosamente, é tomada por uma única forma de viver a religião. Uma espécie de fanatismo que se aproxima de todas as áreas da sociedade, inclusive da política, com a ameaça da evangelização em massa.
O silêncio de quem percebe um estado como o Rio de Janeiro refém de uma religião que prega a exclusão de quem não comunga dos mesmos dogmas, que usa a violência para destruir terreiros de outras fés, que estimula o ódio contra pessoas que ousam serem livres quanto a suas identidades.
E, enquanto posso, sigo fazendo o meu teatro para expandir a minha própria compreensão do mundo, e para tentar entender um pouco mais as voltas que a história dá...
Renato Farias
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