O que ensinam as crianças num mundo em crise?

Imagem Revista Forum

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Cena 

Interna. Noite. Casa. 

Pai entra no banheiro, a filha de oito anos está com um rolo de papel higiênico dentro da pia, a torneira aberta. Os olhos do pai estão arregalados. Ele dá um salto, fecha a torneira, ajeita o cabelo crespo com as pontas dos dedos da mão esquerda.

PAI (gritando)

O que é isso?!

FILHA

Estou lavando o papel.

PAI

Mas, o papel já está limpo.

FILHA

Então, vou lavar pra fazer ele ficar sujo.

Essa pequena cena pode dizer muitas coisas. Mas, menos uma relação entre pai e filha do que uma conversa entre uma criança e uma pessoa adulta. Ou ainda, uma atitude infantil e profunda de quem enxerga o mundo por uma ótica singular. O que quero falar com este artigo é que precisamos encontrar algo que nos una. Não para pensarmos da mesma maneira. Inclusive para pensarmos de modos diferentes sem nos destruirmos por isso. O poeta brasileiro Vicente Cecim sempre escreve sob o olhar das árvores da floresta amazônica. Ele tem histórias dentre as suas belas lições, aprendi que as crianças precisam ensinar para os adultos.

É chegado o momento em que nada que adultos sabem presta para um mundo fértil de vida. E, como ele disse num almoço maravilhoso num clarão no meio da floresta. Cecim disse que as crianças devem pegar gente adulta pelas mãos e levá-las, chega do contrário. Isso tem me inspirado a ouvir as crianças nas minhas pesquisas. A pergunta pelo que nos une foi respondida por Cecim. Ele poeticamente falou: “o que existe de mais antigo em todos nós?”. Eu pensei e ele respondeu antes que eu esboçasse alguma reação. 

Cecim: - nossa infância.

Eu concordei com um grande “sim” dito pelo corpo. Fez muito sentido porque antes de tudo, existimos no mundo na condição da infância. Daí, quero perguntar para quem lê: o que as crianças podem ensinar para pessoas adultas. Ou fazendo a pergunta com mais dignidade:

O QUE A INFÂNCIA PODE ENSINAR PARA O MUNDO?

O pensador Ailton Krenak escreveu um livro muito bonito intitulado Ideias para adiar o fim do mundo. Num dado momento ele diz:  

“a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (KRENAK, 2019, p.27).

Contar histórias é algo que sempre fizemos. Talvez, a humanidade seja justamente a espécie que percebe a vida como um fenômeno narrativo. Mas, o que as histórias ensinam é que a vida não pode ser reduzida ao consumo. Krenak diz que estão ensinando as crianças a se comportarem apenas como consumidoras. No mundo dos brancos são justamente as crianças que mais resistem a se transformarem em consumidoras. Por isso, eu interpreto que antes que para que uma ideia única domine o mundo, uma sociedade precisa seqüestrar a infância das crianças.

Eu não me canso de repetir uma tese impactante sobre as crianças. A filósofa Angela Davis afirma:

“Existe uma evidência incontestável de que há entre crianças um espírito que se recusa a ser subjugado”

(DAVIS, 2017, p.96). 

Davis diz que em qualquer guerra, ainda que a criança seja mais vulnerável, o seu espírito infantil é o que existe de mais resistente diante das maiores batalhas. Ela desenvolveu essa ideia após visitar a África do Sul sob regime de severa segregação racial  nos anos 1980. 

O psicanalista Sigmund Freud usou um conceito chamado de “infantil” para fazer referência a algo que não é a criança, nem a fase da infância.  Mas, a estrutura psíquica enigmática do sujeito. Em outras palavras, o “infantil” é alguma coisa presente em todos nós e que não se permite traduzir completamente. Mas, que está na base da condição humana. O pensador francês Gilles Deleuze escreveu um texto chamado O que dizem as crianças, recusou a falta como algo que nos caracteriza como espécie desde a infância. Deleuze diz que a criança fala de modo singular, evita naturalmente a generalização. Daí, ela entende que a imaginação e a realidade não estão distantes. O filósofo argentino Walter Kohan disse que a infância é o nome de um milagre que introduz algo na experiência, fazendo com que habitemos o mundo de outra maneira.  

Mas, por que todo esse papo cabeça? O que quero dizer com meia dúzia de fragmentos de teorias? Uma coisa muito simples, as crianças inventam histórias e, segundo pesquisas dos estudos sociais das infâncias, brincam. Em todo lugar do mundo: as crianças brincam! O que parece escasso em gente adulta é a brincadeira; não é exatamente o jogo institucionalizado que falta. A brincadeira que está ausente, porque no brincar nem sempre o ganhar e o perder fazem parte do “jogo”. 

Numa terça-feira, dia 30 de Julho de 2019, três gangorras na fronteira entre México e os Estados Unidos da América foram inauguradas. Uma equipe do arquiteto Ronald Rael e da designer Virginia San Fratello construíram esses brinquedos depois de longa negociação e disputas judiciais. O que dizer dessas gangorras? Uma proposta de fazer pontes e derrubar muros – um dos objetivos de muitas brincadeiras. Na ocasião, muitas notícias trouxeram de crianças e pessoas adultas felizes em se conectar. Rale e Fratello quiseram aproximar pessoas num lugar marcado pela interdição. A brincadeira faz isso, derruba fronteiras; constrói pontes. Adultos e crianças brincaram fartamente neste dia, numa região caracterizada pelo silêncio e distanciamento. Nesse caso, a brincadeira foi uma chave para uma porta que estava fechada. 

Eu estou falando de fé na infância. Propor a brincadeira como modo de relacionamento é uma maneira de apostar na infância. Porém, fé na infância não significa acreditar na salvação por meio de um modelo único. Não se trata de nos salvarmos. A pretensão de termos uma resposta simples para problemas complexos é perigosa demais e fez muitos estragos. Por isso, a fé na infância é algo muito sofisticado. Não é a crença de que resolveremos todos os problemas do mundo. Não se trata de uma salvação. Mas, de uma ressalva criativa que assume o mistério da vida como ponto de partida. Nós não sabemos como chegamos e nem o porquê de estarmos aqui. Viver permanece um presente misterioso. O estado de infância significa: aceitar que vivemos um mistério incrível. É isso que chamo de fé na infância. Inclusive algumas religiões tratam a infância como algo divinizante. 

Se os problemas não devem impedir a brincadeira. É porque quando estamos em estado de infância, os problemas podem aproximar e juntar as pessoas para fazer parcerias, e, recuperar a alegria do mistério da vida brincando. O que quero enfatizar é bem simples. Não podemos perder a nossa infância de vista, nosso desejo de brincar, fazer de conta e inventar mundos. Porque se não brincarmos, multiplicam-se a intenções de nos machucarmos por razões políticas, religiosas ou futebolísticas, dentre outras. Se não brincarmos, entramos em disputas de vida ou morte para destruição de parte do planeta (quiçá ele inteiro) e extermínio de gente. É preciso procurar um estado de infância para que a vida seja mais brincante. O estado de infância transforma gente adulta em criança, no sentido profundo da palavra: criar sentido. Criança quer dizer isso. O termo “adulto” quer dizer corrompido; adulto deriva do verbo “adulterar”, isto é, deixar de ser original. Em outras palavras, perder de vista os sentidos que a vida nos dá de presente. Um mundo de adultos é necessariamente corrompido.

De volta à cena, quando a criança lava o papel para torná-lo mais sujo isso revela algo inusitado sobre a vida, podemos criar significados singulares se estivermos disponíveis para brincar. Quem brinca não precisa matar, roubar, sequestrar, colonizar, oprimir, abusar, vilipendiar, depredar  e colocar a vida em risco de extinção. Pode brigar brincando. A brincadeira não vai nos transformar em pessoas “santas”. A minha hipótese é de que brincadeira impede o ataque à vida, porque ela celebra a vida. Porém, somente as crianças sabem brincar de verdade. É hora de gente adulta voltar a ser criança. E de impedir que as crianças cresçam. 

Renato Noguera

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Referências citadas

 

DAVIS, Angela.    Mulheres, cultura e políticaTradução Heci Regina Candiani. São Paulo: Boi Tempo, 2017.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar como fim do mundoSão Paulo: Companhia das Letras, 2019.