Pandemia e Filosofia - parte I

É preciso dizer que quando o ano de 2020 teve início, a imaginação fértil dos roteiristas mais criativos de ficção científica de Hollywood, Nollywood e Bollywood poderiam suspeitar dos acontecimentos. Um evento mundial que entraria para a da História da humanidade, a Pandemia COVID-19 (Corona vírus número).

Pela primeira vez na história do evento esportivo de congraçamento mundial, as Olimpíadas, foi computado um adiamento. Até então, tínhamos três cancelamentos,  1916, 1940 e 1944. O motivo: 1ª e 2ª grandes guerras. Pois bem, além de adiar as Olimpíadas, COVID-19 colocou em xeque a competência de vários governos em lidar com uma pandemia: epidemia com proporções mundiais. É importante dizer que começou como epidemia (doença infecciosa e transmissível que ocorre numa região, grupo ou comunidade e pode se espalhar rapidamente entre as pessoas de áreas próximas) em Wuhan na China em e progrediu vertiginosamente para pandemia. 

 O que ficou nítido logo no início foi que países asiáticos foram mais eficazes em conter o contágio. Tudo indica que o contágio em escala exponencial em vários países da Europa, vale destacar o quanto foi desastroso na Itália que viu doentes e mortos crescerem numa escala incontrolável que colapsou o sistema de saúde do pais em poucas semanas. Estados Unidos da América, Espanha, Reino Unido e mesmo França e Alemanha – esses dois países  tentaram tomar medidas mais assertivas contra o contágio – não tiverem desempenhos tão bons quanto o Japão, Coréia do Sul, China, Hong Kong, Taiwan e Singapura.

Uma das razões está na base cultural. Em sociedades em que o controle é mais extenso, a esfera privada é menor do que aquela experimentada pelo Ocidente ou praticamente inexiste, as tecnologias de controle são profundamente integradas à gestão da vida, tais como dados de saúde, rotina de fluxos de ir e vir das pessoas. Foi esse controle e um tipo, digamos, de “confiança” no Estado. Isso porque, epidemiologia trabalha lado a lado com vigilância digital. O que facilita enormemente o controle. Enquanto, italianos médios desconfiavam de pronunciamentos estatais, nem todos firmes. Na China, Japão e outros países asiáticos, os pronunciamentos assertivos eram acolhidos sem muito questionamento.

Dito isso, é preciso dizer que, por um lado, se trata de uma biopolítica. Tal como explica o filósofo francês Michel Foucault, o fazer biopolítico é um complexo tecnológico de gestão da vida. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han aponta para o fenômeno da sociedade do cansaço, um tipo de fadiga produzida do excesso de produção, uma busca ininterrupta por desempenho. Han critica esse modelo de sociedade em que as pessoas não possuem tempo para o ócio, onde a falta de produtividade se torna um crime.

O COVID-19 É UM MOTIVO PARA A RETOMADA DO ÓCIO.

Essa palavra, “ócio” aparece como um conceito-chave na obra do sociólogo italiano Domenico de Masi. Ele defende a união entre estudo/aprendizado com lazer/diversão. O ócio criativo é uma maneira de experimentar o trabalho como geração de conhecimento e inovação. O que, em certa medida, foi defendido no século XIX pelo genro de Karl Marx, o médico socialista franco-cubano Paul Lafargue. Em seu célebre livro O Direito à preguiça  escrito em 1880, Lafargue defende que o trabalho não é tão essencial à vida humana como a ideologia moderna parece nos fazer crer. Lafargue analisa que podemos viver sem trabalho, ou ainda, sem trabalhar o tempo todo. A preguiça deve ter lugar em nossas vidas, sem que isso signifique um não-lugar como desemprego ou vagabundagem. Para Masi e Lafargue não é bom para o ser humano trabalhar o tempo todo.

A PANDEMIA COVID-19 PARECE COLOCAR ENORMES CONTINGENTES HUMANOS DIANTE DO TEMPO LIVRE QUE RECLAMAVAM.

Porque foi no primeiro trimestre de 2020, pela primeira vez na história da humanidade, que um germe produziu bloqueios em diversas cidades do mundo, confinamentos sociais que impuseram uma pausa nas atividades de trabalho, com exceção dos serviços essenciais (todos aqueles que garantem a sobrevivência e envolvem abastecimento, saúde e segurança direta ou indiretamente). A rotina das grandes cidades, o vai-e-vem para escolas, universidades, fábricas, centros comerciais, espaços de cultura e lazer, turismo,  dentre outras atividades, foi paralisada.

Num outro registro analítico, a única maneira de evitar contágio e mortes foi impedir que a roda da economia continuasse girando, impedindo a produção em massa, deslocamentos, eventos sociais e o mundo antes da Pandemia. Ora, mesmo que temporariamente, isso seria o colapso da economia mundial? O início de uma grande depressão econômica? Mas, esse colapso da economia também significa salvar vidas, direito à preguiça, rompimento com a lógica de que não podemos ter tempo livre. O que também exige que a economia de mercado tão defendida pelos fãs do discurso “Estado mínimo” seja revista.

O Estado tem um papel. Se antes do COVID-19, alguns intelectuais da Escola de Chicago pregavam o fim completo do Estado; a Pandemia veio dizer que só as instâncias privadas são incapazes de enfrentar crises mundiais desse tipo. É o dinheiro público que pode socorrer as populações em situações críticas e, ainda que existam recursos privados, a gestão das crises não pode ser feita por particulares; mas, pelo poder público.

Pois bem, o que presenciamos no final de Março de 2020?

Vários Estados tendo que pagar as contas da máquina produtiva parada, uma atitude biocêntrica diante da gritaria de vários capitalistas de que parar a produção, circulação de mercadorias fechando o comércio e confinando as pessoas em casa poderia ser pior do que as mortes pela contaminação. Se nós formos biofílicos, mais amigos da vida do que do Mercado, entenderemos que num caso desses, cabe ao Estado solucionar os desafios.

COVID-19 nos coloca diante de uma questão: o Estado não pode ser mínimo, tampouco desaparecer. Estado é necessário, indispensável diante das crises.

Um dos papéis do Estado é colocar a vida em primeiro lugar, o bem-estar de todos cidadãos acima da produção de bens. Diante de uma crise histórica como essa. O papel dos Estados nacionais é garantir que a tempestade cause menos estragos, o que inclui políticas públicas que garantam renda básica para pessoas em situação de mais vulnerabilidade social. Em certa medida, o COVID-19 convoca o Estado a garantir o direito à preguiça; os serviços essenciais acabam sendo subsidiados indiretamente ou diretamente pelos Governos locais. Não se trata exatamente de um “ócio” em função do trabalho somente; mas, de uma preguiça em favor da vida.

Uma das primeiras lições do COVID-19, além de solidariedade, responsabilidade, confiança na ciência; precisamos de Estado, entes privados não podem garantir a vida em sociedade. Não são as empresas, grandes corporações que irão liderar as pessoas na superação de uma crise desse tamanho. Diante de uma calamidade, cabe ao poder público mostrar sua eficiência.

Renato Noguera

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