“Pelo Avesso Palavras”

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A abundância metafísica da escrita me fascina. Há palavras que me apetecem em demasia e por esse motivo estão intrínsecas a mim, aos meus textos. Seja a priori na época das aulas de literatura na academia, nas provocações que tento propor aqui quinzenalmente ou no segundo livro que acabei de lançar. A palavra sempre exerceu um poder sobre minhas inquietações mais abstratas, como oráculos que abrem os portais da minha criação e montam o quebra-cabeça que atravessa superfícies. 

Algumas pela cadência sonora, outras pela beleza da sua sintaxe ou pelo saudosismo de uma utilização que se perdera no tempo. Nos tempos de agora elas se perdem no vendaval de efemeridade que dissolve a pungência da sua composição fonética e o real significado da sua existência como um comprimido efervescente de vitamina c.

O uso das redes sociais, principalmente o twitter, me apresenta diariamente um modus operandi contínuo de banalização de determinadas palavras.

O emprego aleatório, desenfreado, em opiniões compartilhadas sobre tudo e todos e tretas virtuais dos mais diferentes assuntos faz com que se deturpe a raíz semântica e que sua expressão sociocultural seja rasurada por definições simplistas e superficiais. 

Na longínqua imensidão da nossa língua, são três os vocábulos que mais testemunho serem vítimas dessa pasteurização de discursos, e que me causam mais incômodo sempre que vejo alguém escrever, escuto alguém falar ou percebo que a rota de naturalização desse uso equivocado segue seu fluxo histórico por osmose e passividade.

I - MILITÂNCIA 

O entendimento de qualquer crítica ou opinião por um olhar reativo e politizado contribuiu pra que o ato de militar por determinada causa social e/ou política se reduzisse a um posicionamento radical, destemperado. Termos como “descansa militante” que volta e meia aparece em comentários e RT’s me fazendo revirar os olhos, reiteram o esvaziamento do real papel do ativismo e da importância da sua força coletiva mobilizante e transformadora. Reproduzir esse discurso oco, sem qualquer embasamento histórico e prático é uma violência e uma injustiça com a verdadeira militância que abriu (e continua a abrir) muitos caminhos para estarmos aqui hoje. Precisamos continuar atentos e fortes para separar militantes de criminosos.     

II - POLITICAMENTE CORRETO

Apropriado pelos movimentos de extrema direita, o termo virou argumento para justificar violência, agressão, opressão, falta de decoro. A adjetivação pejorativa é utilizada como subterfúgio para contrapor falas ultrajantes e tem como objetivo reverter o caráter nocivo das suas ideias à uma autenticidade genuína, popular. O discurso politicamente correto se constrói na inversão dos papéis na narrativa. É uma reação as mudanças sociais, culturais e demográficas que banaliza sexismo, machismo e racismo e atribui ao outro lado uma histeria, uma patrulha voraz e “mimizenta”. No campo minado atual precisamos cada vez mais implodir essa retórica e revelar o que de mais podre e abominável ela esconde no falso véu da liberdade de opinião.       

III - DAR VOZ

Uma das primeiras coisas que aprendi no meu processo cotidiano de desconstruir preconceitos, bolhas, olhares limitantes e privilégios é que ninguém tem o poder, quiçá o direito de dar voz ao outro. Todos a têm. Ela é parte inerente de cada um. Ainda que às vezes não tenhamos consciência da sua presença e que emudeçamos com a tirania que nos oprime, ela sempre estará ali, pronto para libertar. E a melhor maneira de extinguir esse acorde dissonante da nossa partitura textual ou oral é escutando. Nos silenciando e ouvindo o que o outro tem a dizer a gente consegue perceber que existem outras vozes além da nossa, que o mundo se faz na ressonância e não no eco das nossas próprias palavras.        

Escrevi esse texto em dois dias. Tempo proporcional à velocidade em que se enaltece, se cancela, se ama, se odeia, se elogia, se condena, se tudo e se nada, se palavra e se vento.   

Felipe Ferreira

Instagram @ostrafelipe