Programa de índio

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Estamos em 2005, recebo o convite para interpretar um personagem indígena. Até o momento, ignorante, achava que indígena eram os Guaranis e que falavam Tupi Guarani, de fato os Guaranis são o maior povo indígena brasileiro, mas existem 305 etnias e 274 línguas indígenas. Meu mergulho inicial é através dos fulni-ô (índios agrupados na beira do rio) hoje localizados no município de Aguas Belas em Pernambuco.

Através do indígena Tiniá eu começo meu laboratório de pesquisa para esse personagem. Aprendo que a sua língua é Yaathe, e nosso diretor pede a Tiniá que fale um pouco em sua língua e depois pede para que nós atores falássemos o que tínhamos entendido. Para minha surpresa, minha intuição ou minha memória ancestral, consegui compreender parte do que ele havia dito, em seguida ficamos escutando o seu depoimento, de como ele tinha chegado até ali, Tiniá teve parte de sua família dizimada em uma invasão, viu eles morrerem na sua frente, não compreendeu o porquê de tanta violência e decidiu ir a Brasília para pedir para estudar para tentar compreender a cultura do homem branco e assim ele fez.

De fácil comunicação e encantamento, Tiniá me apresentou o canto de sua tribo, músicas de reverência ao sagrado da natureza, que até hoje guardo esses cantos comigo, me ensinou que quando se usa um arco flecha e seu dedo está em carne viva (sou destro), você pode atirar com a esquerda, tudo é uma questão de expansão, de treino, e de fato depois de muito treino lá estava eu atirando com a esquerda, aprendi sua dança, o sagrado de uma fogueira, a força de estar em coletivo ao redor de uma fogueira, a dançar, a cantar, a lutar o huka huka, a tocar o toré, o ritualístico e o sagrado dentro de seu povo.

Tinia mostrava o seu descontentamento com a expressão: programa de índio...”Por que vocês inventaram que programa de índio é algo ruim ? Por que vocês dizem “ah isso é programa de índio para algo que vocês não dão valor”. Programa de índio é cantar, dançar, colher o alimento da terra, pintar, reverenciar a sua cultura e a sua tradição e conviver e comungar com o sagrado da natureza! Tiniá tem toda razão, virei um propagador dessa ideia e toda vez que escutava alguém dizer “isso é programa de índio”, lá estava eu mostrando que programa de índio não cabia para esse rótulo pejorativo que muitas vezes querem dar a uma situação.

Me transformei nessa experiência, foi um processo de um ano, mergulhado nessa cultura tão rica que é a cultura dos povos indígenas. Inspirado por essa experiência fui conhecer mais sobre outros povos, descobri os Ashaninka fiquei impressionado com o Kusma( vestimenta que lembra o poncho gaúcho) e o belíssimo amarentsi (chapéu de penas e fibras), não, índio não anda mais nú e alguns povos preferem sim a proteção de uma roupa e tá tudo certo, estão se adaptando a novas possibilidades, me lembro que Tiniá dizia que seu povo passava uma parte do ano na aldeia tendo uma vida normal e outro tempo em ritual em local mais afastado aí sim, vivendo como seus antepassados viveram.

Minha ligação com os povos indígenas é grande, meu tronco paterno e materna estão no Brasil a muitos anos, não há brasileiro que não tenha sangue indígena salvo raras exceções. Somos um povo multicultural e assim também é a cultura dos povos indígenas, variada, especifica e plural. Hoje em nosso país a questão de demarcação de terras assola e aflige a existência desses povos, eles que aqui já estavam e que cuidam de nossas matas, de nossos rios e de nossa fauna a tanto tempo, estão perdendo a sua terra, o seu território e estão com suas vidas ameaçadas. Peço aos leitores desse artigo, reflexão em seus corações e se possível engajamento.

Obrigado

Raphael Vianna

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Raphael Vianna é ator formado pela Cal e faz parte da Cia de Teatro Íntimo desde 2005.