Racismo: uma breve politização do debate

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Diante de um tema espinhoso, precisamos situar quem lê com cuidado. Antes de falarmos de racismo propriamente, vamos apresentar as categorias analíticas de cor/raça que compõe o quadro étnico-racial da sociedade brasileira.

No Brasil, a classificação étnico-racial oficial passa pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Existem cinco categorias de cor/raça: preta, parda, indígena, amarela e branca. Um detalhe importante é que a categoria preta não deve ser identificada com o conceito político negro, visto que a maioria das pesquisas oficiais corrobora a ideia de que a população negra é a soma das pessoas pretas e pardas. Sem um número determinado de categorias não seria possível estabelecer políticas públicas.

POR ISSO QUE A EXISTÊNCIA DE 38 TONALIDADES DE PELE NEGRA NÃO PODE SER CONFUNDIDA COM RAÇA. 

No ano de 1976, o IBGE não apresentou categorias para as pessoas responderem, mas deixou a questão em aberto. O que trouxe à tona 136 tonalidades, tais como: “cor-de-cuia”, “enxofrada”, “mameluco, “cafuzo”, “cabocla”, “melada”, “verde”, “lilás”, “azul”, “roxa”, “laranja”, “branca-morena”, “meio-amarela”, “bronzeada”, “morenão”, “queimada-de-praia”, “crioulo”, “burro-quando-foge” dentre outras. Ora, como poderíamos analisar indicadores sociais diversos usando a cor “burro-quando-foge”?

Esse é um dos efeitos da noção equívoca de mistura. Imaginem se cada pessoa tivesse uma cor? Como classificaríamos isso politicamente? Seria impossível qualquer análise sobre o racismo. Outra confusão é a afirmação de que somos um povo “misturado”. A pergunta que precisamos nos fazer é como misturar o que não é diferente? Como misturar seres de uma mesma espécie? No campo das ciências humanas sobre relações étnico-raciais, raça não é um conceito biológico.

RAÇA É UM CONCEITO SOCIAL E HISTÓRICO QUE DIZ RESPEITO AO FENÓTIPO; RAÇA É UMA CATEGORIA QUE SE REFERE À APARÊNCIA.

Não tem nada de genético nele. Portanto, o conceito de “mistura” dificulta mais do que favorece um entendimento amplo e profundo de um assunto como esse.

Depois desse preâmbulo, vamos ao ponto do racismo mais detidamente. Uma das abordagens mais comuns que encontrávamos diante do racismo durante o século XX e até o início do XXI estava na ideia de que as pessoas racistas não passavam de ignorantes. Uma leitura iluminista poderia nos fazer crer que seria suficiente informar corretamente e formar as pessoas para eliminarmos o racismo. Mas, será que podemos dar crédito a essa perspectiva? Bastaria afirmar que o racismo é fruto da ignorância? Em caso afirmativo, quais os antídotos da ignorância? A boa formação? Educação de qualidade? Ora, as questões se multiplicariam em torno da boa formação e da educação de qualidade. Neste sentido, nossa primeira conclusão parcial aqui é de que as expressões: “o racismo é fruto da ignorância” e “como isso pode existir até hoje?” são formulações ingênuas.

OU SEJA, O RACISMO NÃO PODE SER LIDO DE MANEIRA SIMPLISTA COMO IGNORÂNCIA; MAS, DEVE SER ENTENDIDO COMO UM SISTEMA ESTRUTURAL QUE ORGANIZA A SOCIEDADE. 

Pois bem, para pensarmos mais a esse respeito vale a pena recuperar uma ocorrência da primeira década do século XXI, na ocasião o prêmio Nobel de Medicina de 2007, o pesquisador estadunidense James Watson disse sem nenhuma base científica que não gostava de trabalhar com pessoas negras, porque as considerava menos inteligentes. O cientista branco Watson, responsável por um dos trabalhos pioneiros e mais significativos sobre o deciframento do genoma humano, afirmou que as políticas ocidentais para países africanos são estéreis devido à inapetência dos povos do antigo continente.  Sem dúvida, Watson, apesar de ser um homem bem informado, um cientista formado, fez afirmações inegavelmente racistas. Neste sentido, atribuir suas manifestações racistas à falta de conhecimento seria muita ingenuidade. O problema precisa ser abordado de modo mais qualificado. 

RACISMO NÃO É FALTA DE INFORMAÇÃO; MAS, UMA ORIENTAÇÃO POLÍTICA E A ESTRUTURA PRESENTE EM TODAS AS SOCIEDADES MULTIRRACIAIS CONTEMPORÂNEAS.

James Watson, assim como qualquer pessoa racista, não o é por ignorância. Mas, por razões sociais e históricas, o que não deixa de ser também – como já foi dito –  uma orientação política, principalmente quando está ligada aos privilégios da branquidade. O racismo só pode ser compreendido se pensado fora das “clicherias" e abordagens superficiais. O sistema racista é complexo e permeia toda a sociedade.

Anteriormente, já mencionamos de modos diferentes que todas as pessoas são socializadas para terem um imaginário racista, agindo sempre a partir da discriminação. Por isso, subestimar o racismo classificando-o como fruto da ignorância é pouco eficiente. Não existe nenhuma eficácia em combater o racismo com o discurso “somos todos iguais”.  O que significa dizer que “todos são iguais”? Um modo de não enfrentar o assunto, desqualificando os dados de realidade de que as pessoas são tratadas a partir de seus fenótipos, isto é, a aparência étnico-racial interfere decisivamente nas oportunidades e ocupação de espaços.

AS AÇÕES AFIRMATIVAS SÃO MEDIDAS DE CORREÇÃO DAS DESIGUALDADES RACIAIS. 

Alguns movimentos políticos têm se voltado contra políticas públicas de ações afirmativas. O dia 26 de Abril de 2012 foi uma data emblemática para a sociedade brasileira, porque foi o reconhecimento jurídico de que se o racismo existe, os meios legais devem ser utilizados para combatê-lo. Sem dúvida, após décadas de debates de movimentos sociais, especialmente o Movimento Negro (MN), e intelectuais antirracistas, o sistema de cotas foi adotado oficialmente pelo Estado Brasileiro em concursos de admissão para cursos superiores.

O Estado reconheceu juridicamente que a discriminação positiva em favor da população negra é constitucional, o que não pode ser confundido com privilégios, tampouco com os discursos pouco balizados de “atestado de incapacidade intelectual da população negra”. As cotas raciais são medidas políticas. Na ocasião, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) atestou que a reserva de vagas nas universidades para população negra e os povos indígenas está de acordo com a Constituição. Nesse período, o que esteve em debate foi uma ação de inconstitucionalidade impetrada pelo Partido Democratas (DEM), o processo movido pelo referido Partido questionava a legalidade da política de cotas implementada pela Universidade de Brasília (UnB) em 2004. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) tinha aprovado o sistema de Cotas raciais e sociais no ano de 2001. A resposta dada pelo STF já era esperada por intelectuais antirracistas e pelo MN.

Não existiam argumentos substanciais para recusar a política de cotas raciais. Por ser uma política antirracista, a lógica é bem simples: recusá-la equivale a apoiar de algum modo a estrutura racista da sociedade brasileira.  Mas, vale dizer que atualmente, o sistema de cotas é sociorracial, não basta ser de cor preta, parda ou indígena; mas, no Brasil é preciso ser uma pessoa pobre. O que é um outro assunto...

Renato Noguera

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