Revolta da vacina 2.0?

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No dia primeiro de setembro, uma apoiadora do presidente se dirigiu a ele para clamar que não determinasse a vacinação da população contra a COVID-19 pois, segundo ela, isso seria perigoso e deveria ser proibido, ao que ele respondeu que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Posteriormente, a secretaria de comunicação do governo divulgou uma peça publicitária com essa frase, enfatizando que o governo prezaria pela liberdade dos brasileiros. 

Antes da pandemia, a questão das vacinas já era objeto de preocupação em razão disseminação daqueles que se posicionam como “movimento antivacina” ou “antivax”, em inglês. Estes, são pessoas que acreditam em teorias conspiratórias de que as vacinas buscam a dominação ou o controle da população pelos poderosos, ou que elas causam mais mal do que benefícios. Esse movimento é um perigo global, estando, segundo a OMS entre as 10 maiores causas de ameaça para a saúde mundial e podem motivar o reaparecimento de doenças tidas como erradicadas. No caso brasileiro, no terceiro trimestre de 2019 foram registrados mais de 2.700 casos de sarampo, que pode ter reaparecido também por conta da baixa cobertura de vacinas. 

A fala do presidente ganha uma dimensão maior ao se inserir nesse contexto e o aproxima ainda mais daqueles que defendem esse tipo de teoria conspiratória. Além disso, essa discussão no nosso país evoca outro evento da nossa história, a revolta da vacina. 

O ano era 1904 e o Rio de Janeiro vivia um momento conturbado após a proclamação da república. A população havia crescido de forma vertiginosa e o planejamento urbano não havia acompanhado esse salto. Mas, para além disso, no centro da cidade haviam muitas moradias populares, sem esgoto e com ruas bastante estreitas. Essa população era bastante atingida por epidemias de tuberculose, peste bubônica, febre amarela e varíola. 

O presidente Rodrigues Alves teve como prioridade reorganizar a cidade e deu amplos poderes para o prefeito, Pereira Passos, que o fez de maneira bastante violenta. O que ficou conhecido como “bota-abaixo”, destruiu cortiços e deixou muitas pessoas desabrigadas, expulsas do centro para os subúrbios, o que vai dar origem nas favelas que vemos hoje. No lugar, foram construídas amplas avenidas e novos quarteirões pois pretendia-se transformar a então capital do Brasil numa cidade europeia, como Paris. 

A questão sanitária também era bastante grave e o Rio de Janeiro era conhecido como o túmulo dos estrangeiros, que adoeciam quando os navios atracavam no porto. Para tentar solucionar essa outra questão, o presidente nomeou Oswaldo Cruz para a direção geral de saúde pública. 

Este, buscou combater a dengue com fumacê e matar ratos para evitar a peste bubônica e, para a varíola, foi determinada a vacinação compulsória da população. O povo, que já estava incomodado com os agentes de saúde que entravam nas casas em busca de ratos e mosquitos, se revoltou quando soube que seria obrigado a se vacinar. Teorias conspiratórias surgiram - como a de que se queria exterminar a população mais pobre – além do apelo moral que também foi evocado – diziam que os agentes queriam apenas levantar as saias das mulheres para ver suas pernas. 

A Oswaldo Cruz coube defender a eficácia da vacina, enquanto os oposicionistas de Rodrigues Alves advogavam pela liberdade individual e inventavam informações para que a população não quisesse ser vacinada, alegando que o objetivo do governo era introduzir doenças nas pessoas para que morressem. A discussão escalou para uma revolta social, com barricadas, apedrejamento de casas, destruição de bondes e agressões que tomaram conta da cidade dentre dos dias 10 a 16 de novembro de 1904. Como resultado, 30 pessoas morreram e muitas ficaram feridas. Os oposicionistas do presidente também tentaram dar um golpe para sua deposição, que fracassou. 

Não se ignora que contexto de 2020 é bastante distinto e não se espera que eventos como os de 1094 aconteçam nos mesmos moldes, mas é interessante notar as similaridades: a desconfiança com o governo, o cenário de crise econômica e social, o desconhecimento sobre a ciência e protestos contra as medidas sanitárias – hoje especialmente contra o uso de máscara – além da existência de teorias conspiratórias e apelos morais. Enquanto pensamos que nossa sociedade se transformou de forma radical, especialmente pelo avanço da tecnologia que temos a nossa disposição, vemos que certas coisas ainda parecem repetir o passado de forma bastante preocupante. 

Mas talvez tenhamos avançado um pouco. Segundo uma pesquisa do Datafolha, 89% da população quer se vacinar contra o coronavírus e, nesta quinta-feira, o governo editou duas medidas provisórias para que o Brasil faça parte do Covax Facility, o programa global de vacinas contra a COVID-19, liberando recursos de cerca de 2,5 bilhões de reais. Além disso, boa parte do discurso anticientífico vem do próprio governo – e não dos opositores, como em 1094 – enquanto a sociedade organizada mostra a sua importância e possui formas de disseminar esse conhecimento antes inexistentes, sendo os grupos conspiratórios minoritários, ainda que demandem um alerta. 

Por aqui, resta saber qual será comportamento e a narrativa do presidente e de seus apoiadores, que utilizam da polêmica, da conspiração e da desinformação como arma política, travando uma verdadeira guerra cultural, no momento em que as vacinas contra a COVID-19 estiverem disponíveis para a população e também qual será o cenário subjacente, no âmbito econômico, político e social. Se diante disso, o presidente fará coro para tentar desacreditar o seu uso e eficácia, ou se buscará mostrar o quanto sua gestão foi eficiente para que as vacinas chegassem à população, somente o tempo nos mostrará, assim como as consequências dessa escolha e o que a vacinação nesse contexto poderá desencadear. 

Arthur Spada

Instagram @arthurspada